Opinião: Estocolmo não é aqui

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Opinião: Estocolmo não é aqui

Não há nada errado em ser um pouco mais humano. Não há mal em desejar um balanço melhor entre a vida pessoal e profissional


30 de setembro de 2014 - 12h25

Por André Kassu* 

Um assistente que é humilhado pelo gerente diariamente e o chama de mestre. O funcionário que reclama do seu chefe em mantra, mas que não dá o passo para ficar longe do mesmo. Um profissional que é tratado aos gritos, mas abafa o que sentiu nas agressões com um aumento. Um grupo de sequestrados em um assalto a banco em Estocolmo. Os reféns usam os corpos como escudo para proteger seus raptores em uma ligação sentimental que se estende por tempos após o ocorrido. Em comum, o lado oprimido que acredita não haver mais saída, que essas são as regras para sobreviver. Uma relação de coerção e poder onde a vítima, extenuada¬ mentalmente, passa até a desenvolver uma simpatia pelo seu opressor. Para os reféns de Estocolmo, os sequestradores garantiram a vida. Para os do cotidiano, a garantia é do emprego.

A maioria das pessoas imagina com quem gostaria de trabalhar. Você elege alguns nomes na cabeça, estabelece uma meta e corre em busca dela. Talvez seja o caminho mais difícil. Porque envolve uma série de fatores, entre eles a imprevisível sorte. Pensar em um emprego ideal é também uma fuga da realidade, uma licença poética para a acomodação. Já que não alcanço o que quero, fico por aqui mesmo. Proponho outra pergunta. Essa é mais difícil de admitir porque envolve ser verdadeiro consigo mesmo. Com que regras você não gostaria de trabalhar? Pensar no que é agressivo aos seus princípios, pode ser um bom jeito de se movimentar.

Falo de princípios porque eles são caros. Para mantê-los, muitas vezes é preciso perder dinheiro. Um funcionário que prefere ser demitido a ter de seguir a quem não admira seria um bom exemplo. Princípios custam mais do que vaga na garagem, job filé e salário. Na cultura “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, acredita-se que todo problema pode ser resolvido em uma gestão estilo programa de auditório. Basta caminhar pelos setores gritando: quem quer dinheiro? Assim, todo mundo fica feliz. No dia 30, mas feliz. Aqui, há espaço para uma nova questão: quanto custa a sua insatisfação? Promessa não vale como resposta.

Cada empresa tem a sua cultura. E nenhuma cultura está equivocada. Você é que se adequa ou não a ela. O que é agressivo para um colega, pode não ser para você. O que você aceita sem titubear, pode não ser tão simples para a pessoa ao lado. É sempre uma questão de escolha. Para o comando, é importante ter as peças certas no tabuleiro. Para as peças, o desafio é saber se esse é o jogo certo. Lembrando: quem se contenta em ser peão não chega nem a cavalo. Eu sou partidário de questionar sempre. Grandes barbaridades começaram por seguir ordens cegamente. Em uma escala menor, empresas são passíveis do mesmo mal.

Difícil falar do exercício da sensibilidade em um ambiente competitivo por natureza. Em um volume de pressão desumana não dá para esperar cobranças sensatas. A simples demonstração de humanidade pode ser confundida com fragilidade. Os profissionais não fraquejam. Eles lutam, remam e não procuram entender o porquê. Há, porém, uma frase do Freud que serve de mudança de perspectiva aqui: “Nós poderíamos ser muito melhores se não quiséssemos ser tão bons.”

Não há nada errado em ser um pouco mais humano. Não há mal algum em desejar um balanço melhor entre a vida pessoal e profissional. Uma hora, a porta do banco de Estocolmo abre. Até lá, tenha em mente que a decisão de correr ou fazer o papel de escudo continuará sendo sempre sua.

* André Kassu é sócio da CP+B Brasil e escreve para o Meio & Mensagem mensalmente. Este artigo está publicado na edição 1629, de 29 de setembro, disponível nas versões impressa ou para tablets Apple e Android.

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