Coffee Break: The greatest

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Coffee Break: The greatest

Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro são a grande celebração do lado luminoso do espírito humano


3 de fevereiro de 2016 - 11h53

(*) Por Marcos Caetano

Nós já sabemos que este ano não vai sequer passar perto de ser agradável. E ele já começou duríssimo, com atentados terroristas dizimando vidas em vários países, além da despedida do genial David Bowie, um dos meus maiores ídolos. Portanto, mesmo com o Carnaval nos ondando, eu teria tudo para estar sentindo tristeza. No entanto, toda vez que lembro que estamos em 2016, não consigo deixar de pensar no seguinte: vamos ter Jogos Olímpicos no Rio. Quantas vezes o esporte foi meu desafogo em períodos de tristeza — e agora não é diferente. Ao pensar nessa grande celebração do lado luminoso do espírito humano, não há como impedir meu coração de se encher de boas expectativas. Aí eu começo a lembrar de meus heróis esportivos — e a escrever sobre eles, que é o que farei aqui, como forma de dar boas-vindas a este ano tão ameaçador. E é assim que hoje escreverei sobre Muhammad Ali. Pode ser?

Às vezes, uma notícia vadia, dessas que ficam perdidas entre anúncios das páginas de jornal ou nos mais recônditos espaços de um site, tem o poder de despertar as mais eloquentes conversas. Foi o que aconteceu comigo há algum tempo, quando li que o ringue no qual foi disputada aquela que nove entre dez amantes do esporte apontam como a maior luta de todos os tempos — Ali vs. Foreman, “The Rumble in the Jungle”, Zaire, 1974 —, havia sido roubado. Despretensiosamente, enviei a matéria para o meu irmão, Léo Caetano, diretor de cerimônias da Olimpíada do Rio e amante da “doce ciência”, que é como os norte-americanos das melhores safras se referem ao boxe. “Ali x Foreman teve ringue roubado”, dizia o link da matéria. Léo me respondeu de bate-pronto e cheio de pavor: “Estou morrendo de medo de ler essa matéria e perder para sempre a fé na raça humana.”

Por que diabos a notícia sobre o roubo de um ringue na República Democrática do Congo, antigo Zaire, seria capaz de fazer uma pessoa deixar de crer na nossa espécie? Não que ela mereça muito crédito, mas eu poderia listar um milhão de coisas capazes de nos fazer perder a fé antes de pensar num singelo ringue da cidade de Kinshasa. Mas a explicação não tardou a chegar, numa mensagem de texto: “Li a matéria e ela trata do roubo do ringue propriamente dito, não de uma luta roubada. Que alívio!” Por alguma razão, meu irmão achou que a reportagem poderia conter denúncias de roubo no resultado da luta. E aí eu entendi o pavor contido em sua primeira mensagem. Porque se aquela luta tivesse sido armada, eu jamais me permitiria acompanhar esportes outra vez. Nem final de Copa do Mundo, nem Olimpíada no Brasil, nem campeonato de botão do prédio. Como meu irmão, eu também perderia a fé na raça humana.

Felizmente, o triunfo do caráter de Ali sobre o mais temível adversário de todos os tempos, naquela que foi a mais improvável e espetacular vitória do engenho humano desde Azincourt, permanecia imaculado. O mesmo não pode ser dito do ringue, embora muitos considerem isso irrelevante. Será mesmo? Acompanhem esta digressão pugilística até o fim — e eu prometo lançar um olhar diferente sobre o tal ringue desaparecido.

A solidão do pugilista sobre o ringue, a complexa cosmologia e a aura de mistério e crueza que cerca o boxe são aspectos que jamais escaparam à sensibilidade de um bom escritor. Talvez por isso, gênios como Ernest Hemingway, Gay Talese, Truman Capote e tantos outros tenham produzido milhares de laudas de belos textos sobre a nobre arte dos punhos. Quem procura entender o drama do boxe deveria ler A Luta, do magistral Norman Mailer, e assistir ao documentário ganhador do Oscar Quando Éramos Reis. Ambos tratam justamente do combate travado sobre o ringue que desapareceu. Os que se debruçarem sobre essas duas obras-primas vão entender por que esse é um dos raros temas capazes de fascinar igualmente os intelectuais e o populacho.

O capítulo “O Homem na Cordoalha”, no qual Mailer descreve como Ali passou vários assaltos recostado sobre as cordas, absorvendo poderosos golpes e cansando o virtualmente invencível Foreman para, em seguida, quando parecia mais derrotado, reverter tudo e nocauteá-lo, é das coisas mais impressionantes que já li. Também foi de Mailer o mais belo comentário no premiado documentário: “No instante de desfecho da luta, Ali teve um último golpe guardado no punho direito — mas ele jamais o desferiu. Não queria que nada, nem ele mesmo, atrapalhasse o prodígio de ver aquele gigante tombar”. Enquanto o grande escritor e jornalista dá esse testemunho, a cena é mostrada no filme. Ali acompanha o desmoronamento de Foreman num misto de júbilo, orgulho, espanto e picardia. E então, nem que apenas por um segundo, você tem a mais profunda certeza de que ele foi o maior atleta de todos os tempos.

Muhammad Ali foi reaparecer em minha vida — entre o combate do Zaire e o premiado documentário — acendendo a pira olímpica dos Jogos de Atlanta, com uma pesada tocha em suas mãos trêmulas. Consumido pelo mal de Parkinson, Ali era uma sombra do lutador maior do que a vida que derrubou aquele gigante, 22 anos antes. Mas seu olhar permanecia igual. Um olhar de rei, de soberano dos ringues e da vida. Instantes antes da pira ser acesa, um vento maldito lançou a chama da tocha sobre seu braço. Eu jurei que Ali ia deixá-la cair. Nada disso. Agonia que terminou em júbilo, exatamente como sua história olímpica. A história do campeão que atirou sua medalha de ouro no fundo de um rio por sentir-se vítima do preconceito. Uma medalha que lhe foi devolvida com os juros da honra de acender o fogo sagrado.

Quantos países dariam a um atleta que jogou fora uma medalha o papel mais importante em uma cerimônia de abertura? Quantos atletas saudáveis não deixariam cair ao chão a tocha cuja chama lhes queimava a pele? Mas Ali, também conhecido como The Greatest, não largou a tocha. Acendeu a pira e, ao fazer isso, incendiou todos os corações do mundo. Quem não chorou naquele estádio pode pedir asilo político em algum planeta inferior: humano é que não é.

E então chegamos ao ringue, à notícia que parece banal. Reflitam: o deserto no qual Davi derrotou Golias continua onde sempre esteve, ao contrário dos contendores. As grandes batalhas da humanidade seguem o mesmo destino: as Termópilas permanecem, ainda que sem Leônidas e seus 300 de Esparta a lhe defender. Da mesma forma, os campos da batalha de Azincourt por lá estão, embora sem Henrique V ou qualquer um dos soldados para narrar a façanha. Todas as praças de combate sobreviveram aos seus protagonistas. Coube a Ali subverter a lógica, porque enquanto ele e Foreman seguem vivos para contar a história de sua grande luta, o palco do combate desapareceu para sempre.

Escrevo esta última frase instantes depois de fechar os olhos e visualizar, nos menores
detalhes, o sorriso maroto de Muhammad, “The Greatest”, ao tomar conhecimento da
notícia despretensiosa que motivou este despretensioso texto coberto de memórias
afetivas. É com esse sorriso que eu desejo que vocês atravessem, olimpicamente, esse
ano que insiste em nos golpear e nos levar para as cordas.

(*) Marcos Caetano é sócio global da Brunswick Group LLC. Este artigo está publicado na edição 1695, de 1o de fevereiro, do Meio & Mensagem, disponível nas versões impressa e para tablets iOS e Android.

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