Um pequeno conto de Natal, com selfie

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Um pequeno conto de Natal, com selfie

Pouco antes da meia-noite, foi até a adega, escolheu o vinho mais caro e postou a mais sorridente selfie que conseguiu


8 de dezembro de 2014 - 10h55

Por Marcos Caetano*

Ricardo é um sujeito sério, como se dizia antigamente. Apesar de viver cercado por toda sorte de aparatos da mais moderna tecnologia, é um homem de antigamente. O Porsche Cayenne, o loft modernoso na Vila Nova Conceição e a casa em Trancoso são apenas despistes. Fazem parte do kit oficial do dono de agência de publicidade, como costuma dizer.

No fundo, o sujeito hiperconectado que deseja feliz Natal para os amigos por meio de um post no Facebook e para a mãe por meio de algo que considera muito mais próximo e carinhoso, um SMS, não passa de um solitário antiquado. Entre as crenças mais arraigadas está a de que ganhar dinheiro não combina com diversão. Ricardo ganhou muito dinheiro em seus 50 anos de vida. E divertiu-se quase nada.

Ricardo não gosta de futebol. Já gostou. Muito, garante sua mãe. Ele se não lembra mais. Deve ter sido antes de começar a ganhar dinheiro e, portanto, antes de começar a viver de verdade. Quando um cliente pergunta pelo seu time de coração, até fala: o Corinthians.

Mas, naquela histórica manhã de domingo, quando o bando de loucos conquistou o mundo, estava num avião — classe executiva, claro — a caminho de uma reunião em Nova York. Pelo Twitter, soube da façanha. No dia seguinte, tentaria vender o controle da agência para um grupo internacional, um assunto importante demais para permitir-se perder tempo com bobagens. “Bando de loucos…”, pensou. “É isso mesmo que esses fanáticos são. Será que vou conseguir uma posição no board global do grupo?” A seriedade de Ricardo, na verdade, atende pelo nome de tristeza.

E, então, chegou o Natal. Aquele dia chato, que atrapalha a reta final do ano, com tantas metas que ainda precisam ser batidas. Normalmente, Ricardo passa a data longe de casa, cada ano com uma namorada diferente, em alguma estação de esqui metida a besta ou em um exótico resort. Este ano, num intervalo entre uma namorada e outra e com a reestruturação da agência a morder seus calcanhares, faltou vontade de viajar.

Como a mãe mora no interior, o pai faleceu há muitos anos e os amigos são sofisticados demais para celebrarem a ocasião em solo nacional, ficou sozinho. Pouco antes da meia-noite, foi até a adega, escolheu o vinho mais caro, postou a mais sorridente selfie que conseguiu — para não quebrar a tradição de que, nas redes sociais, todo mundo é feliz — e apreciava a bela vista da varanda quando notou algo sobre a mesa de centro. Era uma encomenda do correio, que a empregada devia ter largado ali.

Junto com a encomenda, um bilhete da mãe, contando que aquele era um presente que seu pai havia deixado com ela pouco antes de morrer, com instruções expressas de que fosse entregue ao filho somente no Natal em que estivesse com 50 anos. Um tanto assustado, Ricardo abriu o pacote. Dentro, encontrou seu time de botão dos tempos de menino, que julgava perdido na poeira do tempo. Um lindo time de galalite, com os nomes dos jogadores escritos com letra de criança e colados com um durex já amarelado.

Ao topar com aquilo, o empresário sério e implacável não conseguiu segurar uma lágrima que teimou em escapar. Nem se lembrava da última vez em que aquela estranha água salgada havia escorrido de seus olhos. Enxugou a lágrima, voltou no tempo e, feito criança, pôs-se a jogar com os antigos botões ali mesmo, na imponente mesa de mármore italiano da sala. Zé Maria, Ruço, Rivelino, Aladim, estavam todos lá. Inclusive o seu favorito: Adãozinho.

Na manhã do dia seguinte, Ricardo voltou a ser um homem sério e preocupado com os negócios. Mas, sem perceber, começou a ler o jornal pelo caderno de esportes. 

* Marcos Caetano é diretor global de comunicação corporativa da BRF

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