A cegueira dos gigantes

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Opinião

A cegueira dos gigantes

Muitos preceitos que pairam sobre o mercado digital não foram criados para ajudar as marcas, e sim as plataformas


8 de julho de 2016 - 14h00

Foto: Reprodução

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A história que o escritor português José Saramago imaginou para um mundo às cegas desvenda um pouco do que acontece hoje na indústria da comunicação. Assim como os personagens de Ensaio sobre a Cegueira, também as marcas perderam a capacidade de enxergar. Com medo de afrontar as leis vigentes, estão acuadas diante do “mal branco”. Google e Facebook têm o monopólio nas mãos e ditam as normas. Com todo esse poder, vem uma responsabilidade quase desumana. Ao mesmo tempo, as regras precisam ser entendidas e desafiadas. Por mais douradas que sejam, estão em constante mudança. A pergunta que permanece é se elas estão a favor das marcas, do consumidor ou das próprias plataformas?

Um dos mantras diz que vídeos curtos têm performance melhor. Essa regra funciona? Não necessariamente. Isso vai depender da plataforma, do formato usado, do conteúdo e da audiência para os quais foram destinados. O consumo de informação varia muito, especialmente entre os diferentes devices. Por exemplo, é provável que eu tenha visto mais vídeos (séries) por meio do meu tablet nos últimos 20 meses do que assistido a programas de televisão durante toda a minha vida. Outro mandamento: contextualize o seu produto ou serviço nos primeiros dez segundos. Vídeos curtos constroem, sim, lembrança de marca. Mas esse tipo de estratégia não vai garantir o mais importante: valor. Até no Facebook a performance e a retenção da maioria dos filmes de 30” são baixas. Encurtar os comerciais é tão ineficaz quanto os cinco segundos patrocinados na televisão. Então, essa regra serve para quem?

A abundância de formatos disponíveis não pode ser confundida com a procura por conteúdos de rápida absorção. É só reparar na quantidade de horas que as pessoas dedicam para assistirem a séries da Netflix. Somente o primeiro episódio de Fargo, por exemplo, foi ao ar com 198 minutos, enquanto o filme original tem apenas um minuto a mais de duração. Isso vale também para programas de TV mais longos, livros, e os próprios vídeos no YouTube.

Ser capaz de usar conteúdo visual para apresentar conceitos complexos à audiên­cia de um jeito simples seria uma boa resposta para os questionamentos que hoje colocam a efetividade da comunicação em xeque. Os tempos nos quais uma estratégia de comunicação segue sistematicamente fases de awareness e consideration and purchase estão acabando. Justamente porque presumem como ponto de partida que você pode comprar audiência em um ambiente no qual as pessoas estão no controle. Até o channel planning, que estimula a considerar dimensões como shared e earned media, ficou para trás. Tudo virou mídia paga — e mesmo a mídia paga não garante mais a atenção das pessoas.

Nessa desesperada busca, a audiência originada pelos acessos móveis nunca foi tão desafiadora. Apesar de continuar reinando em vídeos digitais, os 30” já não são mais a solução. Ideias precisam ser potencializadas e exploradas em diversos formatos, assets e extensões para garantir impacto. Sejamos honestos. Ninguém teve a coragem de quebrar os códigos para se tornar relevante. A resiliência passou longe da propaganda nos últimos 15 anos. Parece que ficamos à mercê de modismos. Obedecer cegamente ao que as plataformas pregam pode fazer a marca desperdiçar polpudos aportes de verba com a compra de milhões de fãs. Ou, quem sabe, até torrar dezenas de milhares de dólares com uma loja no Second Life. Tudo bem, esse último exemplo ficou até retrô!

Os elevados índices de consumo de vídeos online escancaram uma ferida há tempos exposta. O déficit de atenção mostra que precisamos aprender a ser escolhidos. O mercado da comunicação precisa abrir os olhos para entender o contexto das pessoas, suas aspirações e estudar as suas atitudes. Não vale a pena ficar escravo de plataformas ou formatos. O importante é saber quais são as regras, mas não necessariamente segui-­las. Precisamos rever o nosso modelo mental de brand voice para “brand ears”.

Que tal parar de olhar para o próprio umbigo e começar a enxergar o que real­mente merece a atenção dos consumidores? Deixemos de ser autocêntricos. As estratégias de comunicação não têm mais um asset principal. A própria maneira de testar campanhas precisa ser reinventada. Muitos preceitos que pairam sobre o mercado digital não foram criados para ajudar as marcas, e sim as plataformas. Não espere resultado a partir de conteúdos capengas. Enquanto isso, há publishers reali­zando milhares de testes em uma base diária. O investimento recai nas apostas mais promissoras, como o Tasty do BuzzFeed, por exemplo, que atrai milhões de views a cada postagem.

Como desenvolver parcerias com grandes plataformas se os objetivos de cada uma não são entendidos? Vamos mudar o olhar. É claro que a convergência está presente: Facebook e Instagram entraram na corrida pelo vídeo; o próprio Facebook incorporou o feed e as hashtags que foram inventados pelo Twitter; e esse último passou a concorrer com o WhatsApp durante a interrupção do serviço pela Justiça brasileira quando viu o uso de Direct Tweets explodir no País. Assim como as marcas, cada plataforma tem uma essência.

O nosso trabalho não seria muito mais simples se lembrássemos que o YouTube é feito para consumir vídeo, inclusive de forma imersiva e longa; que o Facebook gera conexões entre pessoas; que o Twitter é sinônimo de fenômenos de compartilhamento; que o Instagram é visual; que o WhatsApp significa comunicação direta; e que o Snapchat é espontaneidade.

Que tal depositar nos gigantes uma expectativa compatível com a essência de cada um? E confiar a aqueles que gerem as marcas o profundo entendimento de um complexo ecossistema de comunicação? Esse pessoal saberá preencher essa tela em branco “platafórmica” para extrapolarmos a lógica da mídia paga e merecer atenção. Afinal, nós é que precisamos enxergar mais longe, até mesmo do que os gigantes.

 

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