O muro atrás do muro

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Opinião

O muro atrás do muro

Eu e o muro que manteve em fogo alto o desejo de que a liberdade nunca fosse perdida e a ideia de que a sociedade é feita de partes diferentes que se juntam e se perdem na mesma velocidade


27 de setembro de 2016 - 8h28

o muro atras do muro - ana cortat

(Foto: Ana Cortat)

Cruzando a rua em frente à minha casa quando eu era criança, havia um terreno baldio cercado por um muro. Por algum motivo que se perdeu no tempo, eu costumava acreditar que existia algo atrás daquele muro que fazia com que eu me sentisse mais forte.

Eu devia ter algo perto de 10 anos e, sem que ninguém soubesse, pulava aquele muro e me conectava com algo que muitas vezes me ajudou a seguir em frente. Eu não era exatamente uma criança como as outras – se você considerar que existe um average de normalidade. Fui diagnosticada com nefrite aos cinco anos e naquela época isso significava que eu podia morrer. Ainda me lembro da boneca que ganhei no hospital. Ela falava quando puxavam uma cordinha que ela tinha nas costas. Era bem mágico!

Como dá para perceber, eu não morri, mas fiquei um ano sem ir à escola. Naquele tempo, acreditavam que não andar era um procedimento necessário para casos de nefrite. Durante um ano não brinquei de queimada, não empinei papagaio, não andei de bicicleta, não corri pelas ruas da cidade. De alguma forma isso me transformou em uma criança solitária, mesmo vivendo em uma casa cheia de irmãs, primos e primas. Parece estranho dizer isso mas aquele muro me ajudou muito.

Nem sua origem nem a primeira ideia que temos do que é um muro nasceu em Berlim, mas desde que fiquei adulta e me esqueci totalmente do muro em frente à minha casa, minha referência de muro é o Muro de Berlim. Em parte, é culpa do meu amigo Artur Vianna. No final dos anos 80, não parecia existir assunto mais importante para ele. O Artur viajou para Berlim para fazer parte do simbólico momento da queda do Muro. Ainda me lembro do dia em que o Artur me descreveu o que sentiu por estar em Berlim naquele instante e tenho bem claro como aquele muro não ajudou ninguém.

Anos depois, o muro que o Artur viu cair desapareceu totalmente. Com ele, a tensão entre os lados que durante anos lembrou ao mundo que a discussão política era necessária. Nos anos nos quais o Muro separou famílias, aprisionou sonhos, limitou expectativas, impôs perspectivas, não fazia nenhum sentido pensar nisso mas aquele muro manteve em fogo alto o desejo de que a liberdade nunca fosse perdida e a ideia de que a sociedade é feita de partes diferentes que se juntam e se perdem na mesma velocidade. Com esse significado, aquele muro ajudou muita gente.

Hoje estive no lado sul do antigo Muro de Berlim. Nessa área, uma grande parte da estrutura sobrevive em meio a um emaranhado de edifícios. Em qualquer outro lugar do mundo eu talvez dissesse que um dia as pessoas irão passar por aquelas ruas e nem se lembrar que um dia ali existiu um muro, mas não aqui. Já faz um tempo que a Alemanha decidiu não abrir mão de lembrar. Todos aqui aprendem desde cedo que a vida é sobre significar, que a memória traz os significados temporais de volta e que memorias temporais, acompanhadas dos fatos que as geraram, ajudam a evitar que a falta de intencionalidade abra espaço para a falta de bom senso e respeito.
Hoje eu estava lá. Depois que o significado mais visível do muro desapareceu, a intervenção artística cumpriu seu papel e ressignificou tudo. Hoje, o muro dos grafites significa retomada. Do outro lado, um encontro inesperado, uma exposição de fotos com homens, mulheres e crianças mutilados, isolados, maltratados, desrespeitados, humilhados pela guerra da Síria. Nesse lado, o Muro grita seu significado político e convida quem passa por ali a uma reflexão ainda pouco comum: nesse momento, o muro significa consciência.

Termino o dia convencida de que sempre existirão muros e que do lugar onde sentamos vamos ajudar a definir o significado de vários deles. Pensa aí. Qual o significado do muro que você está ajudando a construir hoje?

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