O Uber dobrou a curva da demanda

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Opinião

O Uber dobrou a curva da demanda

Segundo estudo, usar o serviço de mobilidade injetou US$ 7 bilhões na economia americana em 2015


21 de outubro de 2016 - 9h57

Muito já se escreveu sobre o profundo impacto que o Uber vem causando na mobilidade das cidades. Ao solucionar uma questão simples, oferecendo carona paga por meio de uma plataforma de autogestão de consumidores e fornecedores, despertou amor e ódio e tem transformado a noção de transporte particular. O que pouca gente sabe é que além do intenso sacode que taxistas têm levado mundo afora, o Uber acabou provocando uma grande revisão de conceitos básicos da teoria econômica. Conceitos esses que se aplicam a todos os aspectos de nossa vida cotidiana a ajudam a materializar fundamentos que antes só podiam ser descritos nas lousas das universidades.

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O ponto de partida para esse achado é Steve Levitt, economista da Universidade de Chicago e coautor da série Freakonomics. Escritos com o jornalista Stephen Dubner, os livros traçam uma rota insólita entre particularidades sociais e econômicas com argumentação sólida e incisiva. Apontam, por exemplo, a correlação entre a legalidade do aborto e o aumento da criminalidade ou a semelhança entre prostitutas e papais-noéis de shoppings. Dubner mantém ainda um podcast homônimo e igualmente interessante, no qual questões variadas da vida moderna são analisadas sobre preceitos econômicos ou matemáticos de forma leve e completamente inteligível. Levitt de vez em quando participa.

Foi num episódio recente do Freakonomics Radio que o economista anunciou como o Uber o ajudou a solucionar uma dúvida que o assombrava desde que escrevia Micronomics, seu primeiro livro: a curva de demanda. “Pensei em realmente trazer isso para nossas vidas, que deveria saber como ela é se quisesse mostrá-la a estudantes. Eu procurei e me dei conta que nunca ninguém estimou como é uma curva de demanda de verdade”, contou Levitt. Dubner provocou: “Quer dizer que esse conceito, do modo que ele existe na literatura econômica, é uma espécie de ficção ou invenção para explicar o restante das transações ao redor disso?” Exatamente, é uma construção artificial, mas tão valiosa para organizar o mundo e resolver certos problemas que ninguém desafia muito sua existência, explicou o professor. “Ok, mas sem ofensa à você e à toda sua fraternidade de economistas”, continuou o jornalista, “isso nos faz imaginar o quanto são realmente válidas e legítimas quaisquer conclusões sobre quaisquer transações uma vez que a gente sabe que vocês estão dando um golpe na curva de demanda.” Se preferir ouvir o programa original (em inglês), clique aqui. Neste caso, depois de escutar o podcast, pule para o 12º parágrafo. Se não, vamos aos achados do Levitt.

Um usuário de Uber economizou US$ 1,50 para cada dólar gasto no serviço, que ele preferiu guardar ou investir em outra coisa. De todo dinheiro recolhido pelo Uber no período, pouco mais de US$ 2,5 bilhões foram para os motoristas, sobrando à plataforma cerca de US$ 1 bilhão

No programa, o economista recorreu à seguinte metáfora para sair da sinuca: “não sei se é justo fazer uma comparação com a física, mas imagine que antigamente os modelos científicos levaram a saber da existência de prótons e elétrons, mas não era possível vê-los literalmente. Era só uma questão de fazer o acelerador ser rápido o suficiente para fazer o que fosse necessário para separar um elétron e então se confirmou que ele existia. Em economia é até mais fácil porque nem se trata de questionar se a curva de demanda existe ou não, pois nós sabemos que sim e a definimos. Mas eu queria pegar numa”. O Uber tornou isso possível, talvez pela primeira vez na história.

Graças à tarifa dinâmica. Isso quer dizer que o preço da carona muda de acordo com a disponibilidade de motoristas. O preço básico de uma corrida é muito baixo na comparação com o táxi tradicional, o que faz a maioria dos usuários sorrir de orelha a orelha. Mas na saída de um show, por exemplo, se houver muita gente procurando por um Uber, o preço pode ficar 1,5 vezes mais caro, ou duas, três vezes, dependendo da demanda. Para quem está disposto a levar um tempinho a mais no trajeto, mas pagar ainda menos que a tarifa básica, há ainda a possibilidade do Uber Pool. Não só a viabilidade do serviço ajuda a calcular a variação de preço, mas também o desejo por um carro.

Mais do que isso, todos esses dados ficam armazenados. Sim: além do histórico em seu smartphone, o Uber guarda essas informações por algum tempo. Mais do que isso, parte dois: a empresa registra também todas as corridas declinadas. Esses dados ajudaram os economistas a determinar outra incógnita diretamente conectada à curva de demanda: o excedente do consumidor.

Explicando: suponhamos que você vá à feira para comprar quatro maçãs e, para isso, tenha separado R$ 4. Na sua cabeça, portanto, é razoável que cada maçã custe R$ 1, este é o preço inicial que está disposto a pagar. Lá, porém, descobre que cada maça custa 50 centavos, o que te faz comprar quatro maçãs com R$ 2, metade da sua estimativa inicial. Portanto, R$ 2 é o excedente do consumidor neste caso. Mas o quadro pode ser muito mais complicado que isso…

Levitt e Dubner, do Freakonomics (Crédito: Reprodução)

Imaginemos que naquela semana você esteja mais afim de comer pêssegos que maçãs. Então até mesmo 50 centavos podem ser muito para você naquele período. Ou que algum caos climático detonou as macieiras e a produção foi baixíssima: o preço vai às alturas, R$ 7 cada. Mas, digamos que você seja um confeiteiro e, ainda assim, decide comprá-las, repassando parte de seus custos na sua famosa torta de maçã. Então R$ 7, tudo bem, você ainda tem uma margem de lucro mínima, mas R$ 8 por maçã já parece mal negócio, você teria de subsidiar a produção. Neste caso, R$ 1 é o excedente do consumidor.

É uma estimativa complicada porque é quase impossível imaginar o que se passa na cabeça de cada consumidor em circunstâncias variáveis para determinar seu teto de gasto para diferentes produtos. A curva de demanda é muito dinâmica e afeta a predisposição de gasto de maneiras tão vastas que essa matemática parecia uma missão irrealizável.

Roberta, a manicure
Com o Uber, foi possível verificar de modo quase preciso como pensa o consumidor. A escala massiva de usuários e as mudanças nos preços de tempos em tempos ajudou Levitt a calcular o excedente do consumidor entre o público do aplicativo. Os dados da empresa permitiram saber quando e em quais níveis e circunstâncias a tarifa dinâmica chegou a um valor que o usuário disse “Opa! Esse tanto não estou afim de pagar a mais”. Um monte de análise e matemática depois rendeu a publicação em agosto o estudo “Using Big Data to Estimate Consumer Surplus: The Case of Uber”, assinado por Levitt e outros quatro colegas. Dois dos colaboradores são economistas do próprio Uber – a contrapartida da empresa para fornecer dados para a pesquisa e permitir sua publicação quaisquer que fossem os resultados. Foram analisadas sessões de 54 milhões de usuários nas cidades de Chicago, Los Angeles, Nova York e San Francisco durante o primeiro semestre de 2015.

Quando entrarmos em carros sem motoristas para ir de A até B, provavelmente será um serviço ainda mais barato e o nosso excedente de consumidor será ainda maior, até o dia em que a própria noção de dinheiro será irrelevante

Um dos principais achados foi que, extrapolando para o ano passado inteiro e para todo o território americano, as pessoas gastaram cerca US$ 4 bilhões no Uber, mas estariam dispostas a gastar até US$ 11 bilhões. O excedente de consumidor foi, portanto, de US$ 7 bilhões, que girou de outras formas na economia americana no período. Para termos mais mundanos, um usuário de Uber economizou US$ 1,50 para cada dólar gasto no serviço, que ele preferiu guardar ou investir em outra coisa. De todo dinheiro recolhido pelo Uber no período, pouco mais de US$ 2,5 bilhões foram para os motoristas, sobrando à plataforma cerca de US$ 1 bilhão.

Os consumidores ficaram, portanto, com sete vezes mais de dinheiro do que a empresa. Joan nem se deu conta da grana excedente que economizou evitando táxis, mas em 2015 juntou dinheiro para produzir seu primeiro curta-metragem. Já o Mike comprou um smartphone novo no fim do ano. Para levar seu serviço de manicure a domicílio, a Roberta só pegava transporte público, mas resolveu gastar um pouco mais com o Uber e atender a muitos mais clientes. Um concorrente levou Gregor a fechar as portas de sua empresa de dedetização, mas ele conseguiu controlar as contas dirigindo seu carro pelo Uber…

General Motors and Lyft Inc. today announced a long-term strategic alliance to create an integrated network of on-demand autonomous vehicles in the U.S.

General Motors e Lyft

Além de apontar a curva de demanda e o excedente do consumidor, o estudo de Levitt comprovou algumas outras coisas, mesmo sem querer. Primeiro, que o pensamento inovador ajuda a derrubar monopólios estruturados não porque ele é perverso e quer acabar com o emprego de taxistas. Mas porque a sociedade tende a evoluir organicamente num sentido mais justo e igualitário (por mais que iniciativas estúpidas ainda insistam em atrapalhar esse processo).

O próprio Uber realiza experiências com carros autônomos em Pittsburgh e um de seus principais rivais, o Lyft, fez uma parceria estratégica com a GM, que faz testes parecidos. Isso mostra que o principal problema a ser enfrentado por processos assim nunca foi a extinção de toda uma classe de trabalhadores, mas o deslocamento urbano (quando se constituiu décadas atrás, aliás, aquela classe de trabalhadores tinha o mesmo propósito). Quando entrarmos em carros sem motoristas para ir de A até B, provavelmente será um serviço ainda mais barato e o nosso excedente de consumidor será ainda maior, até o dia em que a própria noção de dinheiro será irrelevante, seja para adquirir bens, seja para se divertir ou fazer negócios… Nesse futuro, o conceito de curva de demanda talvez deixe de existir.

Enquanto isso, diversos setores seguem patinando porque acreditam que basta ter um site responsivo e bacanudo para se posicionar de forma digna na revolução digital. Hospedagem, seguros, financeiro, varejo, imobiliário, publicidade, jornalismo… Todos parecem ter sempre à mão uma toalha nova para enxugar um gelo velho. Hoje, estão só lustrando a ponta do iceberg. Mas ainda não descobriram que ele não vai muito mais fundo que isso.

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