Quando o dogue alemão virou cavalo

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Opinião

Quando o dogue alemão virou cavalo

Estamos nos desafiando de menos ou acomodando rápido demais em esquemas já conhecidos. E, afinal, um pouco de desequilíbrio faz bem


23 de maio de 2017 - 9h00

Quando pequena, minha filha Júlia viu um dogue alemão passeando no parque. Do alto de seu carrinho, ela acompanhou espantada a passagem daquela imensa criatura. Quando o ser do longo filete de baba pendurado sumiu do campo de visão, ela fez um barulhinho de estalar a língua imitando um cavalo. Rimos juntos. Ela feliz com o acerto, eu com a criatividade da leitura. Até aquele presente momento, a experiência canina da Juju tinha duas figuras: uma labrador amarela, uma salsichinha marrom. Logo, juntando A com B, aquilo não poderia ser um cão, só podia mesmo tratar-se de um autêntico e um tanto pitoresco cavalo.

Foto: Reprodução

Segundo Jean Piaget, nossa capacidade de conhecer não nasce com a gente nem toda experiência vem carregada de ensinamento. O aprendizado surge por meio das experiências que causam o desequilíbrio e nos forçam à adaptação. Ou seja, cada vez que o ambiente nos proporciona um desafio (nos desequilibramos), nos vemos “obrigados” a criar novas adaptações para nos equilibrarmos novamente. Assim, ele entendia que a inteligência humana se renovaria a cada descoberta. Para isso, é preciso expor as pessoas aos desafios. Ele acreditava que desde o nascimento a criança constrói infinitamente suas estruturas cognitivas em busca de uma melhor “equilibração” ao meio. Sendo o conceito de “equilibração” o equivalente à passagem de um nível de conhecimento simples para um mais complexo. Como quem avança de fases no jogo.

Voltando ao parque. Minha filha estava na fase de aprender a reconhecer animais. Até aquele momento, em sua estrutura cognitiva, ela tinha um esquema de cachorro, cujo o objeto tinha um limite claro de tamanho. Na estrutura paralela, ela já tinha visto cavalos em livros, desenhos e em um hotel-fazenda. E, portanto, tinha outro esquema traçado cujo ser parecia mais um cadinho com um dogue alemão.

No seu processo de assimilação, a similaridade entre o cachorro e o cavalo (apesar da diferença de tamanho) fez com que um virasse o outro em função da proximidade dos estímulos e da pouca variedade dos esquemas acumulados por ela até aquele momento. A diferenciação de um bicho para o outro ocorre no processo chamado de acomodação.

Quando eu, o adulto chato, lhe digo: não, aquilo não é um cavalo, é um cachorro, ela, a pequena criativa acomodará esse estímulo a uma nova estrutura cognitiva. Júlia tinha após essa experiência um esquema para o conceito de cão e outro para o de cavalo. E eles não mais se encontravam. Essa, é claro, uma abordagem superficial para um estudo de uma vida inteira de Piaget. No resumo do resumo, gosto da noção de que educar passa obrigatoriamente por provocar uma atividade que traga um desafio.

Tudo isso para o que mesmo? Talvez para desabafar que cercear a criatividade de uma criança não é lá das tarefas mais fáceis. Essas pequenas confusões são das coisas mais belas de acompanhar na infância. E as vamos perdendo ao crescer, ao endurecer. Talvez escreva para compartilhar a sensação de que estamos nos desafiando de menos ou acomodando rápido demais em esquemas já conhecidos. E que mesmo adultos, deveríamos ser capazes de ver o dogue alemão na figura de um cavalo mesmo. Afinal, um pouco de desequilíbrio faz bem.

Para não causar ciúmes em casa, quando a minha Clarinha perguntava pelo avô, eu apontava para o céu de São Paulo e dizia que ele tinha virado aquela estrela ali. Uma noite, dessas sem nuvem nenhuma, estávamos em uma praia bem distante, longe da civilização. Ela, uma formiga, ao perceber o firmamento, disse: como morre gente aqui. E, com poesia, quem estava no céu, agora tinha companhia.

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