Ao Dave, com carinho

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Opinião

Ao Dave, com carinho

Minha reverência ao estilo de frases curtas, a concisão com que finaliza cada texto, a capacidade de síntese e a sua pontada mordaz


18 de setembro de 2017 - 16h37

“O sujeito está na cadeia e recebe uma carta do pai falando: ‘Filho, sinto a sua falta. Queria que você estivesse aqui para me ajudar a cavar o jardim e tomar uma cerveja comigo’. O filho responde em outra correspondência: ‘Não cave o jardim. Não cave o jardim.’ Carta interceptada, no dia seguinte mesmo a polícia revira o jardim inteiro e não encontra nada. Ao saber do fato, o filho manda uma carta para o pai: ‘Gostou do serviço?’”

Fiz um pequeno passeio pelos textos que escrevi nos últimos anos para rever temas, personagens, situações. Encontrei várias repetições, algumas manias (o uso de parênteses como estes aqui), referências à literatura, culinária, natação, uma história que eu repeti em tons menores, as palavras portanto e ora — que aparecem bem. Nessa andança, percebi que há um personagem recorrente, o Dave Trott, que nunca teve a reverência merecida. Chegou a hora de corrigir essa falha.

Eu só comecei a escrever para valer sobre o universo da propaganda depois de conhecer o Dave Trott. Há um pequeno texto em que registrei esse primeiro encontro. Lá eu dissertava: “Por quatro horas, tive o privilégio de ouvir uma palestra do Dave Trott. Sim, foram quatro horas. E poderia ter sido o dobro. Gente sem conteúdo é que nos cansa em segundos.” Isso foi lá no começo de 2012, quando eu ainda mal sabia que aquela aula mudaria a minha carreira.

A história que inicia este artigo foi uma entre muitas contadas. Dave Trott estava escrevendo Predatory Thinking e era tudo inédito ainda. A aula foi uma imersão no seu jeito de procurar um olhar criativo naquilo que nos cerca, de vasculhar as histórias que acontecem nesse mundão afora. No fim, cada aluno ganhou um exemplar de Creative Mischief, seu primeiro livro. O estilo de frases curtas, a concisão com que ele finaliza cada texto, a capacidade de síntese de um assunto que poderia ser esticado ao máximo por mãos menos hábeis, a pontada mordaz que acabou me inspirando a nomear o meu blog Acidez é romantismo, tudo ali, às claras.

Eu só comecei a escrever para valer sobre o universo da propaganda depois de conhecer o Dave Trott

Em outro momento desse dia, houve a revelação de um detalhe da guerra do Vietnã. Apesar do armamento precário, os vietnamitas conseguiam abater vários helicópteros. O exército americano, intrigado, tentava descobrir como eles conseguiam tal façanha sem armas de longo alcance e sem mira telescópica. Até que descobriram a técnica do dedão: quando o helicóptero passar, estique o dedão para cima, se o alvo for menor ou do mesmo tamanho, pode atirar que tem alcance. Isso é o que ele chamava de hackear o sistema quando a expressão nem estava na moda. E lá se vão mais de cinco anos.

Ler as suas reflexões toda semana é um hábito que aguça a minha vontade de observar comportamentos. Do mesmo jeito que eu entro em uma sala de edição e penso no que o Fabio Fernandes mudaria naquele frame, suponho o que ele redigiria sobre o que acontece de estranho no mercado brasileiro. Sendo ele inglês, seria mais sutil, presumo, sem perder a intenção.

Hoje, acredito que ninguém no mundo escreva melhor sobre marketing e propaganda do que o Dave Trott. Por sua aversão à bullshitagem, ele simplifica as coisas de um modo irresistível. No Twitter, eu poderia viver só de dar RT nas suas frases. Por aqui, poderia montar uma infinidade de artigos explorando as suas definições. “O briefing tem de ser o chão, não o teto”. “Se você evita a rejeição, você evita a oportunidade.” “De acordo com as leis da aerodinâmica, um zangão não deveria voar. Acontece que o zangão desconhece essas leis e sai voando por aí.”

Discorrer sobre as tensões mais humanas e desumanas do mercado foi uma forma de flanar na paralela dos seus textos. Consciente de soar como uma cópia barata, optei por alongar as frases. Por respeito absoluto, precisava deixar ainda mais óbvia a minha inspiração. Se escrevo porque não sei desenhar, só escrevo sobre propaganda porque tive a sorte de assistir ao Dave Trott falar.

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