Que seja com fogo e afeto

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Opinião

Que seja com fogo e afeto

Felipe Bronze procura por gente jovem, talentosa, com vontade de fazer, de desafiar e que não diga amém: “Não sou imperativo, sou democrático e orgânico"


13 de novembro de 2017 - 13h00

Se tem uma coisa que irrita algumas pessoas é a felicidade profissional alheia. Como assim o cara rala e sorri? Quando decidi mudar o rumo da prosa por aqui, escolhi alguns nomes para conversar. Logo no começo dessa busca, abri a porta de um estúdio na chuvosa Vila Leopoldina para encontrar o primeiro entrevistado e vislumbrei aquilo que tantos odeiam. Felipe Bronze está feliz. Sendo mais específico, ele está contundido, acabou de sair de uma sessão de fisioterapia, tem horas de gravação do seu programa pela frente, um desconhecido pronto pra fazer trocentas perguntas, e, ainda assim, carrega em si uma alegria tateável.

Começo a conversa perguntando sobre a figura do chef carrasco. A resposta confirma as minhas íntimas expectativas. “Eu era super-rígido, grosseiro. Fui educado assim. Os lugares em que trabalhei fora do Brasil ainda tinham essa figura do chef imperativo, dominante. Depois, a sofisticação do raciocínio revela que isso era até uma idiotice. Porque você perde pessoas boas. Você forma uma ou outra, mas perde. E essa é uma profissão muito mais voltada para a irreverência e para a alegria do que para o militarismo.” A alegria de Felipe torna-se minha também e, dali em diante, é jogar a tarrafa de questões imprecisas, com a certeza de que vem coisa boa nela.

Para quem viu o Felipe Bronze desempenhar o papel de mago da cozinha na TV, é um paradoxo ter uma reles churrasqueira como palco. Soa espartano. Nesse momento, Felipe ressalta que a volta ao fogo foi uma mudança necessária na carreira. “Quando eu fui abrir o Oro novo, levei uns 6 ou 7 meses para deixar tudo pronto e, nesse tempo, eu fazia muita comida em casa. E um amigo meu comentou, meio na sacanagem, que a comida da minha casa era melhor do que a do meu restaurante. Eu fiquei com aquilo na cabeça e, naquele momento, eu voltei a valorizar o meu começo. Sem amarras, sem querer agradar a todo mundo, sem ter algo a defender.” Se o lugar não é o mesmo, se ele é uma nova pessoa, não havia sentido em abrir o mesmo restaurante. Quando estamos do outro lado, sem ter que tomar essa decisão, a equação aparenta ser óbvia. Não é. É preciso um bocado de coragem para confrontar a si mesmo. E com a tranquilidade de quem descreve uma volta no parque, Felipe fala que estava se achando papagaiado, um tanto preocupado em mostrar para os outros o quanto conseguia ser criativo e impecável. Perto do fogo, ele se reinventa. Ou como prefere definir: eu sou evolutivo. Não tenho o menor problema em mudar de opinião.

Pausa rápida para uma tardia explicação. Pensei no Bronze não só pelo talento, mas pela capacidade de atrair integrantes para a sua equipe. As pessoas querem trabalhar com ele, é o que se ouve falar. Intrigado, questiono o fato e ouço dele: eu que quero trabalhar com eles. E aqui reparo que ele usa “nós” para falar sobre qualidade e acertos; o “eu” para os erros. É um detalhe da fala que revela muito, que traz o “eu” errei. Ainda nessa toada, ele acredita que uma das razões de o negócio andar em ritmo acelerado nos dias de hoje é que, assim, ele pode dar vazão a ter muita gente boa em volta.

Voltamos ao início da carreira, da pressão de ter surgido na cena da gastronomia tão cedo. Ser jovem e experiente é um sonho distante, pontua. Hoje, ele tem a clareza de alguns roteiros que viu acontecer e abre essas possibilidades na mesa. Do cara que deixa pra trás um restaurante no momento de ascensão pessoal, e a carreira embica para baixo porque ele descobre, na prática, que não estava maduro para abrir o próprio negócio. Ou do outro que cede à tentação de fazer um trabalho extremamente pessoal, ainda que essa personalidade não estivesse resolvida.

No dia desse papo, ele tinha conquistado mais um prêmio importante, e a palavra equipe surge espontaneamente. Sem nem precisar cutucar, ele me explica que sempre foi um cara com opinião e que nunca gostou de ser um mero repetidor. Ele diz procurar por gente jovem, talentosa, com vontade de fazer, de desafiar e que não diga amém. “Eles têm a total liberdade para apresentar as ideias deles. Não sou imperativo, sou democrático e orgânico”, conclui o chef.

Muitas vezes, quando falamos, repensamos as respostas, criamos complementos que surgem nesse discursar. Felipe abre um novo capítulo sobre as particularidades de uma equipe e da necessidade respeitar cada um individualmente. De entender o papel de cada um deles nessa cozinha. É aqui que ele disserta sobre a impossibilidade de ter somente profissionais geniais e criativos. Que a mescla traz a diversidade e o entendimento de que a base do negócio são as pessoas. O cara pode não ser genial, mas é um relógio trabalhando? Ótimo. O ideal para ele é ter um cara mais sério ali, um tranquilo aqui, um com o timing perfeito da cozinha acolá e aquele que tem foco na limpeza para zelar por todos. O equilíbrio, palavra que surge diversas vezes, soa como um mantra.

“Sou fã do talento, mas também sou fã do trabalho. É raro, mas às vezes acontece de o cara ter as duas coisas: talento e trabalho. Eu mesmo era muito mais talento que do trabalho. Quando achei o equilíbrio, a coisa andou”. Repararam na palavra do mantra?

Jogo na mesa o assunto prêmio, ego e gavetas semelhantes. Felipe revela que, ano após ano, pensava: a gente não vai ganhar mais o prêmio de restaurante do ano, temos que ser mais espetaculares. “Toda vez que você cozinha só para isso, você vai se afastando da pessoa comum, do que te levou a isso. (…) E aí você começa a se comportar como o primeiro lugar e não sabe mais por quê.” Naquela tarde, o prêmio foi comemorado pela equipe. E, com uma ponta de orgulho, ele diz que os caras são feras.

Os pés estão no chão, mas a técnica continua complexa. Para um pudim de leite, foram testadas 34 receitas, ele sublinha. O fato de não explicarmos para o público não quer dizer que cada prato não tenha sido estudado. “Hoje, me divirto mais com a surpresa do que com a exibição.” Felipe simplificou a sua vida. E parte desse processo envolveu tirar a vaidade de cena.

Felipe tem duas palavras para o menu degustação do Oro: criatividade e afetividade. Acho curioso a palavra afeto no ambiente da cozinha. Talvez porque na minha área haja um antagonismo tolo entre diversão e trabalho. Como se não fossem compatíveis. Para Felipe, elas se complementam, e cabe um pequeno retorno aqui. Lembra do amigo que falou sobre a comida de casa? Quando o chef ficou pensando nessa provocação, recordou o significado da comida caseira. Das lembranças insubstituíveis que o sabor da casa traz, do afeto. Essa é uma das memórias que ele busca em suas receitas.

De verdade, o chef só demonstra uma leve irritação quando falam que fulano tem uma cozinha de coração para insinuar que a dele é só técnica. É a única vez que ele se diz chateado com algo. Mas é um relance, passou. Felipe está naquele estado que os amargos chamam de irritantemente feliz. E nada o tira do equilíbrio, equilíbrio, equilíbrio.

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