A pena e a espada

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Opinião

A pena e a espada

Há momentos em que é preciso sangrar a pele para as feridas fazerem a doença silenciosa gritar pela cura


27 de novembro de 2017 - 15h13

Estava conversando com meu amigo Ian Black em um dos intervalos da Conferência do Grupo de Planejamento, no dia 15. Aquela não era uma tarde qualquer. Ken Fujioka e eu havíamos acabado de apresentar o estudo sobre assédio, o Ian não estava lá e queria saber como tinha sido. Foi muito feliz e bem difícil, eu respondi. Não só a apresentação, mas todo esse tempo em cima de um assunto que já não seria simples para quem nunca viveu nem fez ninguém viver constrangimentos, inseguranças, desconfortos, incertezas, fragmentações.

Conheci o Ian há dois anos em um Mesa&Cadeira com a Cindy Gallop que tinha como missão gerar ideias sobre a vinda do Make Love Not Porn para o Brasil. Aconteceu muita coisa daquele dia até hoje, todas, de alguma forma, ligadas àquela Mesa. Engraçado como alguns episódios têm o poder de nos influenciar além da nossa capacidade de compreensão no momento em que acontecem.

O encontro com a Cindy e a recente semana finalizando o estudo sobre assédio tiveram o mesmo efeito sobre mim. Fizeram-me acessar tanta coisa diferente usando tantos sentidos que terminei me encontrando sem saber que eu estava perdida.

Conheci Cindy Gallop no mesmo dia em que eu conheci o Ian, a Thais Fabris, a Mayummi Sato, a Aline Fantinatti, a Olivia Yassudo, a Lia Bock, o Murilo Macul, a Senta Slingerland, o Filipe Techera, a Luisa Martini. Pois é. Estávamos todos lá. Discutindo a relação entre tempo, gênero, autoconhecimento, liberdade, manifestação, sexo e erotismo. Seis dias que incluíram colar lambe-lambes nas ruas de Pinheiros e rodopiar em um pole dance no centro de São Paulo. Os dez dias que passei na Singularity em 2013 me ensinaram muito pouco.

Como explicar o que significa passar uma semana inteira vendo o mundo sob a perspectiva Gallop? Dê um google, talvez você se depare com um anúncio da Gucci onde essa mulher fabulosa, 55 anos na época, usa um microvestido preto e segura uma serra elétrica tendo embaixo de seus pés a pele e a cabeça de um grande urso pardo. Não vou perder seu tempo nem o meu analisando isso. Cindy é Cindy. Em outros tempos, eu certamente diria “quero ser Cindy Gallop”, mas esse filme já foi feito e eu realmente ando bem feliz sendo eu.

Este ano, na 3% Conference, ela lançou um statement: “a diversidade de gênero não vai se tornar uma realidade enquanto o assédio sexual persistir”. Cindy acredita no aumento das mulheres nas posições de liderança e na denúncia como caminhos para acabar com o problema, uma versão de “dead man don’t rape” aplicada aos negócios.

Compreendo o valor desse caminho, faz sentido quando olhamos para cima e vemos homens que passaram anos como gatekeepers, guardadores dos portões que davam acesso às oportunidades e ditadores das regras que ditavam o que precisava ser feito para atravessá-los. Esses homens definiram um jogo e decidiram ignorar que só eles estavam felizes. Sistemas recorrentemente hostis e opressores mais cedo ou mais tarde se encontram com o que plantaram. Vale muito a pena ler Goodbye Gatekeepers no stratechery.com.

Encontrar o Ian quando a apresentação da pesquisa sobre assédio terminou não foi um acaso. Nenhum de nós sabia mas ele estava lá para ser o nó de rede que me conectou de novo com aquele dia há dois anos e com todos os jeitos de agir e transformar o mundo que estavam naquela sala: Cindy e a voz. Olivia e a arte. Mayummi e o sexo. Lia e a palavra. Filipe e as histórias. Murilo e a música.

Ian e eu não temos todo o tempo a mesma visão, principalmente quando tentamos descobrir o melhor a fazer agora. Como a Cindy, ele também acredita que é hora de usar a espada e tocar a pele. Pode ser. Mas eu ainda prefiro usar a pena e tocar a alma. Nada a ver com não agir. Pelo contrário. Narrativas, estatísticas, relatos, imagens podem criar agendas capazes de reconstruir o mundo. Mas, reconheço, em alguns momentos, a espada precisa vir, soltar seu fio e fazer sangrar a pele para criar as feridas que fazem a doença silenciosa gritar pela cura. Essa não é uma imagem que me faz feliz, mas isso, nesse caso, não importa nada.

Pegando emprestado uma ideia que está no parágrafo final de Goodby Gatekeepers: podemos lamentar a mudança ou saboreá-la, mas não podemos detê-la. Aproveite o caminho. O poder flui da descoberta.

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