O quanto mudamos nas redes sociais

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Opinião

O quanto mudamos nas redes sociais

Lacradores de direita, de esquerda, de centro e de todos os matizes estavam se xingando pelas redes sociais, sendo que o Facebook, com excelentes recursos visuais e de interação, parecia ser o lugar ideal para isso


16 de janeiro de 2018 - 19h37

Eu me lembro perfeitamente de uma palestra que assisti há muito, muito tempo, quase numa encarnação passada, quando atuava no mercado financeiro do Rio de Janeiro e, por alguma razão insondável, fui parar num fórum de companhias de seguros em Dallas. O evento transcorria como todo fórum de empresas de seguros deve transcorrer — ou seja, no segundo dia, ideias suicidas já tomavam conta dos participantes —, mas, ainda assim, aguentei firme. A empresa havia bancado a viagem, e missão dada é missão cumprida. Participei de todas as sessões, fiz anotações e, na volta, apresentei-as. Ainda bem que sou assim. Se tivesse ido embora mais cedo, teria perdido a surpreendente apresentação de encerramento, a cargo de um professor de filosofia da Universidade de Notre Dame, cujo nome eu esqueci, mas jamais os ensinamentos.

Como um bom filósofo, o velho professor começou fazendo perguntas: “Quando éramos mais jovens, a gente gostava de gastar tempo com coisas meio pueris, como o sentido da vida, o amor, de onde viemos e para onde vamos, o valor da amizade… Não é verdade?”. “Sim!”, responderam todos. “E é claro que hoje nos preocupamos com coisas muito mais sérias, como a evolução do mercado financeiro, a cotação do dólar, a política interna das nossas empresas… Certo?”, ele continuou. “Certo!”, respondeu a audiência. “Pois saibam que vocês todos estão loucos!”, gritou o professor. “Daqui a 30 anos ninguém fará a menor ideia de como foi a economia este ano nem qual foi a cotação do dólar.  Mas as grandes questões do mundo, presentes nos debates dos filósofos em todas as épocas da humanidade, continuarão sendo estas: o sentido da vida, o amor, de onde viemos, para onde vamos, a amizade. Isso é o que importa e o que sempre importará!” Os executivos fizeram cara de criança quando o sorvete cai no chão. “Isso prova” — arrematou o professor — “que vocês eram bem mais sábios quando jovens”.

O espírito daquela palestra retornou aos meus pensamentos na virada de ano. Recordei as palavras do professor ao me deparar com uma daquelas mensagens corriqueiras do Facebook: “Você publicou isto há nove anos”. Ao ver a foto que havia postado e a mensagem que a acompanhava, percebi o quanto eu havia mudado desde que decidi fazer parte da famosa rede social. Mudei eu ou mudou o mundo? Mudaram as outras pessoas ou mudamos todos? Com essas perguntas na cabeça, decidi fazer um pequeno trabalho de pesquisa. Eu me pus a acompanhar a evolução das publicações de dez ou 12 grandes amigos, aqueles que mais admiro pela capacidade de análise, coerência e profundidade de pensamento. E que os amigos estivessem, como eu, há pelo menos nove anos no Face. Dar uma passeada pelos principais posts dos amigos ao longo de quase uma década foi algo que, além de matar as saudades, me levou a uma conclusão surpreendente: a grande convergência no padrão de comportamento dessas pessoas ao longo do período.

Lacradores de direita, de esquerda, de centro e de todos os matizes estavam se xingando pelas redes sociais, sendo que o Facebook, com excelentes recursos visuais e de interação, parecia ser o lugar ideal para isso

O que aconteceu com esse grupo de amigos nas redes sociais é algo que eu poderia classificar como um desolador sinal dos tempos. Na primeira fase, por volta de 2007, éramos bem mais inocentes. Publicávamos coisas simples, do dia a dia: fotos das pessoas que amamos, de animais de estimação, cenas caseiras e até coisas engraçadas e absurdamente tolas. O Facebook era, então, um canal de comunicação com a família e os amigos mais próximos. Sem a patrulha ideológica, era mais comum toparmos com comentários um tanto toscos ou até censuráveis. As pessoas agiam assim porque se sentiam protegidas em um grupo restrito de amigos de verdade. Com o tempo, ao passarmos de dezenas para centenas de amigos, já não dava para garantir que nossas publicações não seriam julgadas. Foi aí que muitos se ligaram que o Facebook poderia ser utilizado como um veículo de projeção de imagem. Estou falando de 2009, aproximadamente. Vivemos, então, a segunda fase, que marcou o auge da ridícula disputa de quem era mais feliz na rede. E tome fotos de viagens espetaculares, sofisticados pratos de comida, casas incríveis, piscinas nas quais nunca chovia e toda a sorte de situações por meio das quais provávamos ao mundo o quanto éramos invejáveis.

Esse modelo cansou, depois de certo tempo. Muitos usuários seguem a linha até hoje, mas não os mais esclarecidos. Nessa terceira fase, que ocorreu ao redor de 2010, as pessoas não queriam ser reconhecidas por coisas, mas por ideias. Em princípio, isso até sugeria uma evolução, uma vez que uma ideia é sempre mais relevante do que a foto do atum que comemos no almoço. Só que, com seguidores que se contavam não mais às centenas, mas aos milhares, ideias que eram apenas apresentadas passaram a ser debatidas. Novamente, isso poderia sinalizar uma evolução. Mas, como agora sabemos, debates com milhares de quase estranhos é algo que jamais poderia acabar bem. Foi então que chegamos à quarta fase, marcada pelas passeatas de 2013, quando a coisa mais importante nas redes sociais passou a atender pelo verbo de “lacrar”.

A coisa pegou fogo. Lacradores de direita, de esquerda, de centro e de todos os matizes estavam se xingando pelas redes sociais, sendo que o Facebook, com excelentes recursos visuais e de interação, parecia ser o lugar ideal para isso. Essa fase louca das argumentações lacradoras, que marcou o processo político brasileiro nos últimos anos — e que não foi diferente na última eleição norte-americana —, continua muito presente hoje em dia. No entanto, eu já percebo o surgimento de uma quinta fase. Cada vez mais cansado de discutir com pessoas que chegaram até a admirar, esse grupo de amigos foi se recolhendo. Posta cada vez menos e com menor contundência. Como chegamos a um ponto em que todo assunto pode se tornar polêmico, as pessoas mais esclarecidas se impuseram um autoexílio e passaram a compartilhar coisas absolutamente pessoais (a foto de um filho, do bicho de estimação, de um grupo de amigos) ou coisas absolutamente impessoais (um artigo interessante, um texto que publicaram em algum veículo, curiosidades inofensivas). Eu adotei esse modelo. Até pensei em postar algo sobre o Globo de Ouro ou a última capa da New Yorker. Mas a preguiça de rolar no chão com comentaristas radicais de Facebook foi mais forte. Fiquei na minha, quietinho. O que não deixa de ser triste.

Minha avó, Dona Eulália, dizia que os olhos são espelhos da alma. Se ela vivesse hoje, certamente concordaria comigo que as redes sociais também são.

 

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