Coluna do meio. Deu zebra

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Opinião

Coluna do meio. Deu zebra

Quando um líder não é claro nas suas escolhas, a equipe tende a correr atrás de todas as opções


26 de março de 2018 - 14h39

O enigma é lançado pelo guia turístico de Moscou. O frio não permite grandes elucubrações. A praça está tomada de policiais vestindo aquela coisa meio chapéu, meio gorro felpudo. Ushanka é o nome, descubro em uma pesquisa com os dedos congelados. Há barreiras por todos os lados, grades de ferro e um palco montado para o sorteio da Copa do Mundo. Sirenes não há. Um tira, palavra adorada desde a infância, vasculha os carros estacionados com uma espécie de vassoura com detector de metais na ponta, enquanto sósias de Stalin caminham à procura de uma foto remunerada. Apreensão no ar. O guia, porém, está com o seu grupo parado em frente ao imponente Hotel Moskva. Ele não parece ligar para nada do que acontece ao redor, toda a sua atenção está retida na edificação. O enigma é simples: o que há de diferente na fachada desse hotel? Escuto uma voz interna que diz “tempo” e penso no botão vermelho que devo apertar ao saber a resposta. Não sei. O guia faz a revelação.

Na direção de criação, a palavra direção não está ali para fazer figuração. E isso vale para todos os cargos de diretoria. Em algum momento, você tem de fazer uma escolha, apontar um caminho. Não dá para se esquivar

(Nesse momento, a narrativa é interrompida para um flashback histórico que visa esclarecer o enigma. Trilha sugerida: Back in the U.S.S.R., The Beatles.)

Anos 30. A lenda diz que coube ao arquiteto Alexei Shchusev a dura missão de aprovar o seu projeto de fachada para o Hotel Moskva com o líder soviético Joseph Stalin, o real, não os sósias que perambulam por lá. A pressão não era pequena, posto que existia uma grande expectativa em torno da construção. Precavido, Shchusev levou duas opções de desenho, cada qual com suas peculiaridades, embora levemente semelhantes. O problema é que ambos estavam na mesma página, e o líder, não percebendo, fez um xis marcando a sua escolha. O xis foi cravado no meio. Nem em uma nem em outra. Exatamente no meio, como quem aposta em um empate.

no meio, como quem aposta em um empate. O arquiteto deixa a sala sabendo que questionar o líder não é uma opção. A obra é erguida com as duas fachadas laterais distintas. Uma mais austera, outra com adornos. A construção ganha um status de marco histórico. Frank Lloyd Wright, em visita a Moscou, ao se deparar com o hotel, afirmou ser um dos edifícios mais feios do mundo.

(Jump cut para os dias de hoje. Metáforas corporativas. Sugestão de trilha: Think, Aretha Franklin.)

Quando um líder não é claro nas suas escolhas, a equipe tende a correr atrás de todas as opções, tal e qual um David Luiz perdido no jogo contra a Alemanha. O que acarreta em um gasto desnecessário de energia e, em grande parte, com resultados pífios.

Um líder que comanda pelo temor, e não pelo respeito, dificilmente ouve um questionamento. Lá está ele, claramente equivocado, apontando para o precipício; e o rebanho corporativo, mesmo sabendo o fatal destino, o segue sem que ninguém levante a mão e fale: “olha, isso que você está falando não faz sentido”. O eu líder, o eu que tudo faço, o eu que sou foda não aceita contraposição.

Na direção de criação, a palavra direção não está ali para fazer figuração. E isso vale para todos os cargos de diretoria. Em algum momento, você tem de fazer uma escolha, apontar um caminho. Não dá para se esquivar.

Se a sua equipe não entende o que você fala, você tem um problema. Se ela não entende e sente que não há espaço para a pergunta, você tem dois. Se ela já não escuta o que você fala — porque, afinal, tudo terá de ser feito do seu jeito —, você não tem mais equipe, tem assalariados.

Juntar uma ideia daqui com outra dali raramente gera algo memorável. Na maioria das vezes, o que temos é um sushi de burrito. Parece que agrada a japoneses, parece que agrada a mexicanos, mas é uma bizarrice.

O meio é um lugar morno.

(Trilha final: Public Enemy, Don’t Believe the Hype)

A história do Hotel Moskva tem contornos de uma lenda, uma fake news de raiz. A versão alternativa diz que outro arquiteto do time e Shchusev não conseguiram chegar a um acordo e, então, fizeram uma fachada ao gosto de cada. O que nos leva ao mesmo resultado. Que o diga Frank Lloyd.

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