Temporada de caça

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Opinião

Temporada de caça

É impossível projetar o quanto o Facebook estará modificado quando do cessar-fogo ao qual agora está exposto


26 de março de 2018 - 14h15

Créditos: vasiliki/iStock

Em um dos primeiros episódios da segunda temporada de Merli, o professor de filosofia do ensino médio que dá nome à curiosa e divertida série explica aos alunos que para Immanuel Kant a verdade está acima da integridade física de qualquer pessoa. “Para Kant, se todos têm o direito de mentir, é difícil confiar em alguém. E se não há confiança, não se pode criar uma sociedade”, afirma Merli, sintetizando o pensamento do filósofo prussiano do século 18. A moral proposta por Kant, cujo valor está no ato e não na consequência, é classificada como utópica de maneira unânime pelos adolescentes em sala.

É ingênuo pensar que o mesmo não tenha ocorrido a Mark Zuckerberg quando passou a desenvolver sua plataforma de conexões humanas em rede e possíveis aplicações — uma vez que parte de sua atual defesa firma-se na premissa de que foi idealista demais ao prever que os possíveis usos de sua máquina de geração de dados seriam restritos a comportamentos dignos de uma sociedade imaginária, que ele talvez considere exemplar. Nunca houve uniformidade em nossas condutas nem em nosso arbítrio.

Se a analogia de que os dados são o novo petróleo se provar correta, é plausível pensar que o aparato de segurança necessário para um negócio fundamentado nas informações de seus usuários seja similar ao de uma instituição financeira

Mas, como sabe agora, melhor do que nunca, o seu CEO e fundador, o negócio do Facebook, queira ou não, está totalmente alicerçado na confiança. E nesse ramo não é possível terceirizar a culpa por não conseguir oferecer essa sensação nem para seus usuários, nem para seus clientes. Se a analogia de que os dados são o novo petróleo se provar correta, é plausível pensar que o aparato de segurança necessário para um negócio fundamentado nas informações de seus usuários seja similar ao de uma instituição financeira.

“Temos a responsabilidade de proteger os seus dados, e se não podemos, não merecemos servi-lo”, desculpou-se Zuckerberg, em sua primeira declaração pública sobre o escândalo do uso indevido de informações de usuários do Facebook pela Cambridge Analytica — a acusação é de que os dados coletados de 50 milhões de usuários tenham sido usados para a entrega de anúncios dirigidos a certos públicos, com a intenção de influenciar a eleição presidencial norte-americana e o pleito que decidiu pela saída do Reino Unido da Comunidade Europeia, ambos realizados em 2016.

Como a temporada de caça ao Facebook parece longe de seu pico, é impossível projetar o quão a empresa estará modificada quando do cessar-fogo ao qual agora está exposta.

Quanto mais cairá o valor de mercado da companhia (cujas ações desvalorizaram algo em torno de US$ 50 bilhões na semana passada, após a divulgação do escândalo)? Haverá uma regulação pública imposta por autoridades governamentais? Os anunciantes continuarão a bancar os US$ 40 bilhões que a empresa faturou com publicidade em 2017? Executivos de confiança de Zuckerberg, como seu chefe de segurança de dados Alex Stamos e a executiva-chefe de operações Sheryl Sandbergh, deixarão a companhia como especula reportagem da The Economist? A publicação britânica traz em sua capa da semana uma brincadeira gráfica com o “F” do logo do Facebook para compor sua manchete: “A falha épica”.

Se não se pode prever o desfecho do imbróglio, a edição de março da revista Wired revelou em detalhes como o inferno astral de Zuckerberg começou. Na reportagem, é possível mapear cada momento emblemático em que os erros do Facebook foram ganhando escala, um potencializando o outro, até a formação da atual tempestade perfeita. Ao mesmo tempo em que ficava claro que a plataforma não poderia fugir da responsabilidade intrínseca a todo veículo de mídia pelo conteúdo publicado, cada vez mais os algoritmos e robôs passaram a tomar as decisões.

Com o cenário de polarização exacerbado e a especialização no uso das ferramentas por pessoas e companhias com propósitos nada nobres, as coisas saíram do controle e o campo ficou propício para a semeação e o alastramento das notícias falsas. O advento das eleições presidenciais e a manipulação da plataforma por agentes russos elevou o debate, então, para um caso de segurança nacional.

O tempo dirá se o mea-culpa de Mark Zuckerberg e as medidas para reconstruir a confiança na plataforma que ele mesmo criou, mas acabou por perder o controle, vieram tarde demais.

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