Desprazer, meu nome é Norman

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Opinião

Desprazer, meu nome é Norman

Viver a vida com criatividade nos traz a noção de que ela vale a pena, mesmo quando os fatos indicam o contrário


4 de junho de 2018 - 10h48

Teste de Rorschach (Crédito: Reprodução)

“Apresentamos o Norman, a primeira inteligência artificial psicopata do mundo”, disseram os pesquisadores do MIT Media Lab, em comunicado. “Ele foi inspirado no fato de que os dados usados para ensinar um algoritmo podem influenciar significativamente seu comportamento. Norman sofreu de prolongada exposição aos piores recantos do Reddit — o maior fórum de discussões da internet — e representa um estudo de caso sobre os perigos da inteligência artificial quando dados enviesados são usados em algoritmos de aprendizado de máquina.”

Já escrevi por aqui sobre uma mania de guardar notícias, anotações ou coisa que o valha na esperança de que eles repousem e criem nova vida. O trecho acima descansou pouco. A data remete a 16 de abril, deste estranho ano de 2018. Publicada no jornal O Globo, a matéria trazia algumas imagens do teste de Rorschach, aquele das manchas de tinta, sabe? Somos dois na superfície do assunto. Criado em 1921 pelo psiquiatra Hermann Rorschach, esse é um teste psicológico projetivo, composto por dez manchas de tinta impressas em cartões (cinco em preto e branco, cinco em cores). A ideia de Hermann era explorar as representações imaginárias das pessoas a partir das imagens mostradas.

Corte bruto no espaço-tempo. O tal Norman foi alimentado com imagens do lixo e do chorume da internet. O mesmo algoritmo foi exposto aos bancos de dados Coco (objetos comuns em contexto, na sigla em inglês) para ter uma base de comparação. As respostas para o teste foram absolutamente opostas. Um vaso com flores visto de perto, respondeu o robô-padrão. Um homem é morto a tiros, disse Norman. Um grupo de pássaros em cima de um galho de uma árvore, falou o padrão. Já Norman entendeu como a imagem de um homem sendo eletrocutado e morrendo em seguida.

Terminada a matéria, imaginei que deve ser assim que nascem os eleitores de certo candidato da extrema direita. Pobres algoritmos alimentados pelo medo do outro, pelo ódio e por uma fé cega de que uma arma nas mãos resolverá qualquer problema. Não me proponho, entretanto, a seguir por esse caminho. Há outro mais fértil e inspirador. O psicanalista Donald Woods Winnicott, recente obsessão da minha esposa, é quem me faz trilhar: “É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral; e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o (verdadeiro) eu”. Criatividade é, nesse sentido, a capacidade de diferentes abordagens do indivíduo à realidade externa. E isso vale para o que nos agrada ou desagrada. Viver a vida com criatividade nos traz a noção de que ela vale a pena, mesmo quando os fatos indicam o contrário.

O escritor Haruki Murakami disse que sua vontade de escrever teve como origem uma partida de beisebol. Ao ouvir o “som agradável” do taco atingindo a bola, ele teve a tal certeza: “Nesse momento pensei subitamente, sem nenhum contexto e sem nenhum fundamento: ‘É, talvez eu também possa escrever romances’.’” Sem querer comparar, mas foi em um show do Caetano e seus filhos que pensei no Norman, no Murakami, na violência que nos cerca e nas relações que gostaria de construir. Tomado pela delicadeza que havia no palco, na generosidade, na inventividade de Tom, optei pelo que vale a pena.

Winnicott acreditava que quanto mais radical é uma pessoa, mais pobre culturalmente ela é (alô, extremistas). Norman nos alerta, da pior maneira, que o ensinamento de valores éticos na inteligência artificial (puro reflexo de nós mesmos) é um passo distante. Entre fechar com Norman, prefiro Winnicott.

“Se a garotinha nos disser que quer voar, não nos limitemos a responder: ‘As crianças não voam’. Pelo contrário, devemos agarrá-la e fazê- la girar em torno da nossa cabeça, colocando-a depois no alto do armário, de modo que ela sinta realmente que está voando como um pássaro para o seu ninho.”

Criatividade é necessária para que a gente nunca se esqueça de sonhar em voar. Nem de ensinar a sonhar.

 

*Crédito da imagem no topo: farakos-iStock

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