Um grande erro chamado “lugar de fala”

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Opinião

Um grande erro chamado “lugar de fala”

Cada geração tem seus males — e a nossa geração parece ter entre suas grandes mazelas esses conceitos “lacradores”, cuja única consequência é lacrar a passagem de ar para novos participantes em um debate e a passagem de luz para novas ideias. 


23 de janeiro de 2019 - 13h14

Crédito Kubkoo/iStock

Conheci um executivo metido a moderninho — na verdade, um dos sujeitos mais desagregadores e invejosos que já conheci — que vivia repetindo esta frase: “O que importa não é o que você fala, mas de onde você fala”. É o tipo da frase charmosa, que pode até seduzir os ouvidos, mas que encontra sérios problemas na hora de se entender com o cérebro. Ao menos foi assim com o meu cérebro. Naquela época, ainda não sabia disso, mas a frase do tal executivo nada mais era do que a definição de um dos conceitos mais babacas com os quais já tive contato: o do chamado “lugar de fala”. De acordo com esse conceito, você só pode falar sobre feminismo se for mulher; só pode discutir o racismo se pertencer a uma minoria; e só pode discorrer sobre o Brasil se morar no país. Esses são apenas alguns exemplos, mas o princípio do lugar de fala vai mesmo por aí. Não faz muito tempo, escrevi uma coluna absolutamente feminista e elogiosa às mulheres. Apanhei feio. Como eu, que sou homem, tive a audácia de escrever sobre as mulheres (ainda que eu o tenha feito, e deixado claro, a partir da minha ótica masculina)? “Conheça seu lugar de fala”, escreveu uma jovem no meu post. Ao ler aquilo, percebi que a frase de efeito do executivo tinha realmente conquistado adeptos. E tive ainda mais certeza de que ela era uma péssima frase, sobre uma tragédia de conceito.

Até entenderia a importância do lugar de fala, mas apenas no seguinte contexto: estou com a camisa do Fluminense, vou até a torcida do Flamengo e grito algo como “Vai perder, urubu!”. Nesse caso, e talvez somente nele, o lugar de fala pode ser relevante — e eu diria até que decisivo, ao menos para a minha integridade física. Em todas as demais situações, o lugar de fala não pode e nem deve ser determinante. Uma mulher pode dizer um milhão de bobagens sobre as mulheres, assim como já conheci integrantes de minorias com conceitos de vida absolutamente racistas. Por outro lado, afirmo que a brilhante Jennifer Egan — para mim, o talento mais promissor da literatura moderna — criou alguns dos personagens masculinos mais interessantes da ficção. Quem leu o soberbo A Cruel Visita do Tempo, sabe do que estou falando. E o que dizer da Diadorim, de Guimarães Rosa?Há personagem feminina mais empoderada e corajosa do que ela, na história da nossa literatura? Já vi palestras brilhantes sobre temas judaicos proferidas por não judeus, da mesma forma que poucas pessoas tinham uma visão mais humana da questão palestina do que o judeu Amós Oz, um gênio da escrita que acaba de nos deixar órfãos de seu brilho pacifista.

Cada geração tem seus males — e a nossa geração parece ter entre suas grandes mazelas esses conceitos “lacradores”, cuja única consequência é lacrar a passagem de ar para novos participantes em um debate e a passagem de luz para novas ideias. O lugar de fala é uma dessas bobagens. Como debater as questões dos jovens e sua relação com o mundo se só ouvirmos os jovens, e não o resto do mundo? Como solucionar a questão do assédio se os homens não forem envolvidos? (Em tempo: homens também são assediados, perguntem ao Terry Crews). Esse raciocínio de excluir dos debates pessoas que podem contribuir muito com eles, apenas por uma questão de lugar de fala, é como deixar integrantes de polícia — e só eles — debaterem como será resolvida a questão da violência nas comunidades carentes e nos estádios. Violência é crime, e crime é assunto de polícia, certo? Errado! Também é assunto de polícia, mas não apenas dela. Jamais resolveremos a questão da violência nos estádios sem a participação dos torcedores, da mesma forma que é piada achar que se pode solucionar a questão da violência em comunidades sem ouvir membros das mesmas ou sem conscientizar os usuários das drogas que financiam o crime nesses locais.

Mudei-me para os Estados Unidos há apenas dois anos, mas juro que já ouvi de várias pessoas que não posso me meter no debate político do País, uma vez que não moro aí e, portanto, perdi minha licença para debater. Em vez de entender que o distanciamento me deu uma nova perspectiva, os defensores de lugar de fala preferem acreditar que as décadas que passei no País foram permanentemente apagadas, tudo por uma simples questão geográfica. Pensem no seguinte: levado às últimas consequências, o lugar de fala pode produzir situações tão bizarras quanto pessoas que estão debatendo o abuso infantil cassarem a palavra de um dos participantes apenas por ele jamais ter sido abusado. “Você não pode falar sobre o que não experimentou”, dirão. Parece bizarro, não? Pois é exatamente para esse nível de isolamento que caminharemos, se continuarmos a dar cada vez mais importância à lacração besta do lugar de fala. “O prefeito já morou em Madureira? Não? Então não se atreva a falar do nosso bairro”. “Barack Obama tem uma visão sobre a questão dos menores carentes no Brasil? Ele que cale a boca, pois nunca morou aqui e é um ignorante dos nossos problemas”. “Fulano é palestino, mas ele morou na Faixa de Gaza? Não? Então, que não venha falar do que não conhece”. “Jennifer Egan vai dar um curso sobre literatura para escritores brasileiros? Bobagem. Ela jamais escreveu em português, não sabe onde o calo aperta”. Acho que já posso parar com os exemplos.

É curioso como algumas das pessoas donas de um belíssimo (e importante) discurso sobre a diversidade são as primeiras a defender, com enorme intransigência, a questão do lugar de fala. Nunca vi contradição maior. Diversidade significa muitas vozes — diferentes, dissonantes, contraditórias que sejam — participando dos diálogos. Se discutirmos qual o maior problema do país apenas com integrantes de forças de segurança, é bem provável que a conclusão seja de que a violência é o mal maior da nação. Já se adicionarmos ao debate médicos, educadores, empresários, religiosos, líderes comunitários, psicólogos, jovens, idosos e integrantes de diferentes minorias, é bem provável que cheguemos a outras conclusões. Ou até à mesma, só que com muito mais certeza sobre o diagnóstico.

Poucas coisas podem ser mais prejudiciais à elevação de um debate do que uma famigerada frase de efeito, como essa do executivo, na abertura do texto. Menos lacração e mais diálogo, moçada. Que essa seja nossa resolução de 2019. Vamos descer dos nossos púlpitos das redes sociais, de onde discursamos sozinhos, quase sempre por meio de frases que pretendem encerrar os assuntos, para conversar com as pessoas no mundo real. Porque o Brasil não precisa de frases ou conceitos para encerrar debates — precisa entender que a grande maioria dos debates relevantes para o seu futuro nem sequer foi iniciada.

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