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Normalidade e (in)sanidade

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Normalidade e (in)sanidade

Adoecemos à medida em que nos agarramos ao desenvolvimentismo e negamos as compreensões sistêmicas, nossa natureza solidária e nossa cultura cidadã. Falsas teorias nos levaram a todos os desequilíbrios, incluindo a desigualdade, as doenças físicas e mentais e as pandemias do século XXI


27 de abril de 2020 - 8h14

 

 

Por Cesar Paz e Edson Matsuo (*)

Recentemente, um amigo comentou: tudo o que mais desejo é que essa crise passe logo para voltarmos, sãos e salvos, à normalidade.

Sobre esse comentário, cabe a reflexão: o que é “normalidade”? O que é ser “são”?

O fato é que não deveríamos voltar à normalidade, se o normal era justamente o maior dos nossos problemas. Também não poderíamos voltar completamente sãos, se há muito tempo estamos doentes.

Como propriamente disseram Fritjof Capra e Henderson, em recente artigo sobre as pandemias, as falsas teorias do desenvolvimento e progresso humano, medidas por números e métricas baseadas em indicadores econômicos, como PIB, preço do dólar, índice da bolsa ou superávits, culminaram em crescentes perdas sociais e ambientais. Poluição do ar, da água e da terra, destruição da diversidade biológica, perda de serviços ecossistêmicos – todos exacerbados pelo aquecimento global – aumento do nível do mar e perturbações climáticas maciças.

É evidente que adoecemos à medida em que nos agarramos ao desenvolvimentismo e negamos as compreensões sistêmicas, nossa natureza solidária e nossa cultura cidadã. Falsas teorias nos levaram a todos os desequilíbrios, incluindo a desigualdade, as doenças físicas e mentais e as pandemias do século XXI, como SARS, MERS, influenza e o coronavírus.

Nos últimos anos, construímos, todos “doentes”, em escala global, a polarização política que expõe a nossa natureza mais agressiva, usa como matéria-prima a eleição de inimigos e dá forma a uma falsa política, uma política do avesso, que exclui, não dialoga e fomenta o ódio. A esses exemplos seguem outros tantos em escalas e territórios diversos. É muito fácil imaginar as coisas que “doentes” fazemos hoje e sobre as quais nos envergonharemos no futuro breve.

Estamos vivendo muito mais do que uma pandemia ou um problema gravíssimo de saúde pública. Tamanha é a importância deste momento que podemos imaginar uma verdadeira mudança na periodização clássica da história. Sairemos, em alguns meses, da Idade Contemporânea para entrar na Idade “sei lá o que”. Historiadores saberão batizar essa nova era como algo que represente o novo Renascimento.

Na passagem para a Idade “sei lá o que” teremos espaço, urgência e protagonismo para os ecossistemas criativos, os processos de inovação e transformação, os modelos sistêmicos, as construções colaborativas e coletivas e o bem comum. Por fim, e acima de tudo, valorizaremos o cuidado com a biodiversidade e com todos seres vivos. As matérias-primas serão o pensamento criativo e a empatia.

Esse não é um processo de transformação que possa ser simplificado, mas é possível perceber que as transformações são inexoráveis e já se processam em diferentes dimensões.

Num primeiro plano, as transformações quase imediatas se referem a todos os tipos de  organização (estado, igreja, empresa, sindicato, família, etc…) e seus modelos culturais. Em poucas semanas de pandemia, já é evidente o salto quântico em termos de inovação organizacional ocasionado pelo choque da sobrevivência.

Em um plano intermediário, temos as transformações das nossas conexões com o mundo e com o próximo, resgatando valores da nossa natureza que há muito estavam adormecidos. De repente, muitos se tornaram mais solidários, mais empáticos, mais família. Deixamos o campo exclusivo da racionalidade para sermos pautados também pelo afeto, pelas emoções e pelo cuidado com os outros. Uma pauta, por exemplo, como a renda básica universal, que seria assunto de décadas e com fortes correntes ideológicas contrárias, passará a ser compreendida sob novas perspectivas de viabilidade, a partir das experiências durante a Covid-19.

Por fim, a transformação mais importante e mais complexa que ousamos pensar que também começa a ocorrer em uma escala ainda não vista, é a transformação individual do ser. A transformação capaz de nos trazer o equilíbrio e a conexão com visões sistêmicas e com a dinâmica do universo sempre em movimento.

Por tudo isso, é óbvio, não voltaremos sãos à normalidade.  Como disse Ailton Krenak, um dos mais destacados ativistas do movimento socioambiental, “se voltarmos à chamada ‘normalidade’, não valerá de nada as mortes de milhares de pessoas”.

(*) Cesar Paz é empreendedor e fundador da AG2 Sapient e Edson Matsuo é designer. Ambos são articuladores do POA Inquieta, coletivo de Porto Alegre que tem como propósito a transformação local através da economia criativa.

 

 

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