Quando as marcas ignoram a influência da população negra

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Opinião

Quando as marcas ignoram a influência da população negra

Campanha publicitária do Personal Vip Black denota falta de repertório dos códigos culturais e de consumo da maioria do País


26 de outubro de 2017 - 18h20

Nos últimos dias, a marca Personal Vip lançou um produto inusitado e inédito no mercado: um papel higiênico com folhas pretas. Contudo, provavelmente em razão da falta de planejamento estratégico da ação publicitária que desconsiderou os códigos culturais de consumo da população negra, o lançamento do produto foi ofuscado por questionamentos acerca do cunho preconceituoso da campanha, gerando um constrangimento desnecessário, com perdas financeiras e associação da imagem da marca ao racismo.

O principal erro da marca foi a falta de repertório, pelos criadores da campanha, dos códigos de consumo do grupo étnico que representa a maioria da população brasileira. O Brasil, assim como qualquer outro país com resquícios da colonização escravista, ainda carrega na construção do senso coletivo um imaginário racista.

Logo, o que vimos na campanha são apenas reproduções inconscientes desse senso comum. Infelizmente, como consequência disso, nossa publicidade é viciada e com frequência reproduz elementos de cunho racista, mesmo que não intencionalmente. Então, faltou no planejamento dessa campanha, ou até mesmo como critério de aprovação do conceito, uma análise semiótica de alguém que entendesse os códigos culturais de consumo da população negra.

A população negra foi o grupo que mais ascendeu socialmente nos últimos anos e, consequentemente, a que mais se “empoderou”. Por representar quase 60% da população do País, sua insatisfação tem, ou deveria ter, efeito imediato no posicionamento das marcas. Considerar esse “imaginário negro” deve estar nos alinhamentos estratégicos de posicionamento, pois, mesmo que o público negro não seja o target de uma campanha publicitária, não se pode ignorar a influência afro que o País inteiro tem.

As marcas têm importante papel de influenciadoras culturais e o fato de elas não se atentarem a essas questões as coloca no papel de perpetuadoras de um discurso vergonhoso da história do Brasil.

Quanto ao slogan, a utilização de “Black is Beautiful” na campanha da Santher, criada pela Neogama, não teria problema algum se ela não tivesse juntado alguns outros elementos no mesmo lugar.

O slogan, em outro contexto, teria outra conotação. O problema foi onde se deu e com quais elementos ele foi aplicado. A composição semiótica entre papéis pretos, slogan e aplicação do produto, juntos, produz uma construção racista dentro do consciente coletivo brasileiro.

Parece inofensivo, mas essa simples campanha carrega elementos semióticos que, sem que se detenha um repertório dos códigos de consumo da população negra, passam despercebidos

Ou seja, ao juntar os elementos da cor do papel, a finalidade do produto e arrematar com o slogan, você definitivamente produz uma comunicação com significado racista.

Parece inofensivo, mas essa simples campanha carrega elementos semióticos que, sem que se detenha um repertório dos códigos de consumo da população negra, passam despercebidos, como:

– “Black is Beautiful” foi o slogan do movimento negro americano nos anos 1960, protagonizado pelos Black Panthers, que objetivou, com a ajuda desse mantra, resignificar a construção do “negro” na sociedade através da exaltação de sua beleza, depois de o sistema colonizador ter desempenhado o papel de esvaziamento do consciente e inconsciente dos afrodescendentes.

– No Brasil, a população negra nunca esteve representada nas campanhas de produtos de higiene pessoal. Feche os olhos e tente se lembrar de homem negro ou mulher negra protagonizando uma campanha publicitária dessa categoria. Na consultoria Etnus, estimamos que esse número seja de 0%. Então, de repente, o slogan do movimento negro é atrelado a um produto que limpa a parte que excreta as impurezas do corpo.

– E, por fim, o Brasil tem quase 60% de autodeclarados negros, logo, os códigos de consumo dessa maioria têm que ser respeitados.

Infelizmente, muitas marcas ainda não estão preparadas para lidar com esse novo consumidor, que clama não apenas por representatividade, mas por uma representatividade efetiva e alinhada aos seus códigos culturais. A grande maioria das empresas está perdendo o timing de se conectar com a população que mais ascendeu economicamente nos últimos anos.

Sendo assim, esse case de insucesso mostrou que ignorar os códigos culturais da população negra, predominante no País, produz prejuízos inestimáveis em se tratando de imagem de marca e, ainda, ônus financeiro, já que a Santher e a Neogama anunciaram que acataram as críticas e retirarão o slogan da campanha (leia-se: mais custos/hora de pensamento estratégico, impressão, gestão de crise, social mídia etc). De qualquer forma, graças a esse episódio, elas se juntaram ao hall das empresas que tiveram perdas relacionadas à desconsideração do contexto racial, como já ocorreu com a loja de roupas Maria Filó e, recentemente, com a Dove.

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