Cumplicidade silenciosa

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Opinião

Cumplicidade silenciosa

O silêncio é uma atitude e nos torna cúmplices de uma realidade tóxica de assédio e abuso de mulheres


30 de outubro de 2017 - 12h51

Não existe ausência de posição. Na linha de frente, atrás das cortinas ou em cima do muro, todo tempo assumimos lugares de atitude e fala. A todo momento, quando escolhemos virar a cara, fingir não ver, atravessar a rua, fechar ou abrir os olhos, manifestamos o que pensamos em relação ao que vivemos todos os dias.

O futuro do mundo, do nosso mundo, é decidido a cada segundo, toda vez que optamos por participar ou não das pequenas e grandes discussões que vamos vivendo ou encontrando pelo caminho.

Reconhecido ou não, o assédio sexual e o abuso já eram uma realidade na relação entre senhores e suas escravas no Império Romano e continuaram sendo quando a força de trabalho da mulher começou a ser explorada em maior escala durante a revolução industrial na segunda metade do século 18.

Apesar disso, o assunto só se tornou tema jurídico em 1979, quando a advogada e feminista Catherine Mackinnon publicou o artigo “Assédio sexual de mulheres trabalhadoras” onde ela propunha que fosse tratado como discriminação sexual.

Quase quatro décadas depois, grande parte das legislações específicas que foram sendo criadas e implementadas sobre o assunto continua sendo ineficiente e o assédio sexual continua tratado como tabu nos corredores de diferentes corporações, em diferentes indústrias, no mundo todo. Na publicidade não é diferente. Até este momento, apesar da imensa quantidade de casos que crescemos vivendo ou presenciando, ainda insistimos em repetir frases simplificadoras que tentam desconsiderar ou diminuir o problema.

Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), indicam que 52% das mulheres economicamente ativas já sofreram assédio sexual, isso não é pouca coisa e não falar do assunto não faz com que a o dado desapareça. Mantermo-nos indiferentes no papel do vizinho que prefere não se manifestar enquanto ouve os gritos no apartamento ao lado, nos torna cúmplices do constrangimento, da humilhação, da dor que, se nunca nos alcançou pessoalmente, já atingiu e continua atingindo mais da metade das mulheres de nossas famílias e daquelas que conhecemos e frequentam nossas casas diariamente.

Protegidos pelo disfarce tanto de personagens divertidos, sem má intenção, brincalhões e piadistas quanto pelo disfarce de personagens atenciosos e paternais, assediadores se escondem na sombra da indiferença coletiva, se mantêm graças a legislações frágeis e se alimentam do medo e da culpa que fragiliza e silencia mulheres que, na maior parte das vezes, preferem não contar suas histórias nem mesmo em seus círculos familiares mais íntimos, onde sempre pode existir alguém, homem ou mulher,  capaz de tirar da manga frases como “engraçado, isso nunca aconteceu comigo” ou “será que você não entendeu errado?”

É verdade, toda essa discussão gera muitos desconfortos, se não fosse verdade, não estaríamos falando disso até hoje, quase 40 anos depois da primeira tentativa de tornar o assunto público e reconhecido como uma questão passível de punição legal. É verdade, assediadores muitas vezes são charmosos, talentosos, inteligentes, bem-sucedidos, poderosos, mas nada disso muda nada. Talentosos, inteligentes, bem-sucedidos, poderosos ou não, assediadores são insensíveis ao outro, egoístas, cruéis.

Esta semana, quando Cindy Gallop, uma das publicitárias símbolo da defesa da diversidade no mundo da publicidade, escreveu: “tenho sido muitas vezes procurada, ao longo dos anos, por mulheres que sofreram assédio sexual em nossa indústria. Estimulei todas elas a contar suas histórias publicamente e me ofereci para apresentá-las aos meus amigos repórteres e editores. Historicamente, as mulheres têm relutado em falar e revelar nomes. Estou esperando que o clima atual mude isso porque a realidade não vai mudar até que mulheres corajosas estejam dispostas a falar e acabar com os Harvey Weinsteins da nossa indústria de uma vez por todas” e convidou mulheres a revelar nomes e lhe enviar por e-mail suas histórias, ela colocou em pauta um dos pontos- chave da preservação de comportamentos hostis: o silêncio e não apenas o silêncio das vítimas.

O silêncio que está em pauta é também o silêncio de quem observa, presencia, toma conhecimento ou consciência. O silêncio que é uma atitude e nos torna cúmplices de uma realidade tóxica que tem reflexo na saúde das corporações e, consequentemente, na saúde das famílias e da sociedade. Se a expressão assédio e abuso de mulheres te parece pouco significativa, sugiro que você substitua mulheres por esposas, mães, filhas, irmãs, amigas. Aquelas que não são poucas, não são fracas, não são burras, não são mal-humoradas, não são mimimi, nem sempre são feministas, mas sempre, todas as vezes, são vítimas. A hora é agora e cada um de nós, tem à sua frente várias escolhas, entre elas, a escolha de assumir a palavra. Você tem alguma coisa a dizer?

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