Facebook: descurtir?

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Facebook: descurtir?

Empresa foi pega no meio de dois fenômenos: uso das inovações tecnológicas como arma política e guerra cultural das elites americanas


22 de março de 2018 - 15h49

(Crédito: David Ramos/Getty Images)

Na sua essência, o Facebook é uma organização que transforma capital social em capital financeiro. Faz isso combinando dados pessoais (idade, preferências político-religiosas, estado civil, etc), com relacionamentos (o gráfico social) e manifestações sobre conteúdo (likes, compartilhamentos, posts) para gerar informações que permitem aos anunciantes reduzir os custos com publicidade ou aumentar a eficiência de seus investimentos através de um melhor direcionamento da sua comunicação. Ao ser tragada em um escândalo envolvendo a legitimidade de processos políticos, a empresa corre dois riscos: um de natureza financeira e outro de legitimidade social.

No front financeiro, o Facebook já tinha sido advertido em 2011 pela Federal Trade Comission (FTC, o órgão anti-truste do governo americano) sobre a falta de fiscalização e controle dos dados que os desenvolvedores de apps podiam ter acesso. Eu mesmo, utilizando softwares gratuitos, conseguia puxar dados individuais através da análise de fan-pages até meados de 2012. Após esse episódio a empresa começou a controlar melhor o acesso e entre 2014/2015 implantou uma série de diretrizes sobre informação aos usuários e auditorias nos desenvolvedores, mas claramente o controle era frouxo – foi isso que permitiu a Global Science Research, empresa de um pesquisador da Universidade de Cambridge, coletar dados não apenas das 270 mil pessoas que baixaram seu aplicativo, mas também dos seus cerca de 50 milhões de amigos e posteriormente fornecer essas informações para a Cambridge Analytica. O acordo firmado entre o Facebook e a FTC previa uma multa de até 40 mil dólares por usuário em caso de reincidência. Se multiplicarmos isso por 50 milhões de pessoas afetadas pelo vazamento da informação, são dois trilhões de dólares. Ainda que o valor da multa fique em 1% disso, são 20 bilhões de dólares – um volume considerável mesmo para uma empresa deste porte.

O Facebook acabou, ainda que involuntariamente, assumindo um importante papel na Esfera Pública. Não sei se ele vai sobreviver intacto, mas tenho certeza que as consequências dos últimos acontecimentos vão alterar profundamente a dinâmica da publicidade on-line nos próximos anos

Mas a multa é algo “pontual”.  Certamente não será aplicada na íntegra. O principal risco, ao meu ver, está no aumento do “custo” que o Facebook vai ter para extrair dados pessoais na medida em que as pessoas se tornarão mais conscientes sobre o valor desta informação e na pressão que podem exercer sobre anunciantes que usam estes dados. Se olharmos os últimos resultados financeiros da empresa, veremos que ela consegue ter uma margem operacional estupenda (cerca de 57% do faturamento) com uma receita mensal por usuário de apenas 2,02 dólares (números referentes ao 4º trimestre de 2017). Se menos pessoas estiverem dispostas a fornecer seus dados, ou os anunciantes passarem a direcionar menos investimentos, esses resultados não vão se repetir. Mas não tenho bola de cristal para afirmar que isso vai acontecer. Observando alguns acontecimentos dos últimos anos, fica claro que a maioria das pessoas não é consciente do valor da sua privacidade e que os anunciantes, após alguns resmungos, voltam a investir no meio digital –até porque a pressão dos investidores ativistas por resultados não deixa muita margem de manobra aos diretores de Marketing

Em relação a questão da legitimidade da empresa diante da sociedade, o Facebook foi pego, ainda que de forma involuntária, no meio de dois fenômenos distintos: o uso das inovações tecnológicas como arma política e a guerra cultural das elites americanas. No primeiro caso, estamos falando de uma tradição já centenária: em 1918 Lenin utilizava a mais importante tecnologia de comunicação da época, o cinema, para difundir a mensagem da Revolução. Estúdios completos foram montados em vagões de trens e os melhores cineastas russos, incluindo Sergei Eisenstein, foram chamados para dirigir documentários sobre como o comunismo estava melhorando a vida dos camponeses. Muitos eram filmados em uma vila, revelados e montados no trem e exibidos em sessões nas estações seguintes. Goebbels aprofundou este processo, incluindo nele uma combinação entre filmes “noticiosos”, muitos deles recheados de notícias falsas, e o entretenimento. Ele considerava a diversão leve como a mais importante arma na batalha pela “alma” do povo alemão (para quem tiver interesse no assunto, recomendo “The Master of Propaganda”, excelente documentário da BBC sobre o assunto).

Essa apropriação da tecnologia como arma política foi intensificada nos últimos anos em função da guerra cultural na elite americana (lembrem-se que o primeiro episódio com o digital envolveu um blogueiro republicano que denunciou o affair entre Bill Clinton e Monica Lewinsky em 1998). Empresários do setor tecnológico-financeiro da costa Oeste, tradicionalmente democratas (apoiaram Clinton, Al Gore, Obama e Hillary), combatem simultaneamente a velha guarda do partido Repulicano, dividida entre os empresários do setor de petróleo do meio-oeste, fortemente ligados ao protestantismo (família Bush) e setores industriais-financeiros da costa Leste, responsáveis pelo financiamento da campanha de Trump. Não é por acaso que a Strategic Communication Laboratories (SCL), empresa controladora da Cambridge Analytica, tem no seu conselho doadores da campanha do atual presidente americano.

Assim como aconteceu com a Standard Oil no início do século XX, e com a AT&T a partir dos anos 70, a sociedade civil não admite que empresas cresçam ao ponto de ameaçar a estabilidade do sistema político. O Facebook acabou, ainda que involuntariamente, assumindo um importante papel na Esfera Pública. Não sei se ele vai sobreviver intacto, mas tenho certeza que as consequências dos últimos acontecimentos vão alterar profundamente a dinâmica da publicidade on-line nos próximos anos.

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