Mashup culture: tudo num só lugar

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Opinião

Mashup culture: tudo num só lugar

Um novo de jeito de pensar, fazer e existir e de aceitar continuamente novas referências, preocupada em equilibrar elementos diferentes, por vezes, contraditórios


28 de setembro de 2018 - 14h13

Crédito: reprodução/YouTube

João Lucas virou outro, me disse sua mãe, surpresa com o novo comportamento do filho. Nascido em uma família pobre na periferia do Grande Rio, até os 17 anos ele nunca tinha trabalhado. De uma hora para outra, mudou. Depois de uma noite de farras, perdeu o celular velho que tinha e desesperou-se. Arrumou um emprego como servente de pedreiro por um salário de R$ 750,00. No mesmo dia, comprou o modelo mais completo do mercado. Pagou mais de R$ 4 mil. Parcelou em prestações que levaram metade do seu salário por dez meses. Dormiu tranquilo. Perguntado sobre o porquê da compra, respondeu: “Aqui tem tudo, num só lugar”.

Ter tudo num só lugar é a tônica do nosso tempo. Herry Jenkins, em A Era da Convergência, viu na transformação tecnológica a brecha para uma revolução cultural. O autor apontou alguns cenários de mudança, mas parou por aí. Aqui, parto do conceito de Jenkins para ir além. Defendo que o crescimento exponencial da mobile-zação da vida contemporânea levará ao surgimento um outro modelo de cultura: mashup culture — um novo de jeito de pensar, fazer e existir capaz de aceitar continuamente novas referências, preocupada em equilibrar elementos diferentes, por vezes, contraditórios e colocá-los em relação.

A mashup culture não nos cobra escolhas, não comporta uma vida social separada em caixinhas, não permite planejamentos para o futuro com detalhes e nos nega continuamente o direito de sermos apenas um. É chegado o momento de aprendermos a viver sem sobras, aceitando tudo que nos oferecem, inebriados com as novidades que ainda não temos e com o desafio de introduzi-las em nossas vidas de maneira harmônica como se sempre tivessem estado por lá.  É o fim da era do “ou”, conjunção alternativa, e o início do império do “e”, conjunção aditiva. Cada vez mais, seremos isso “e” aquilo, estaremos aqui “e” lá, viveremos no passado, no presente “e” no futuro — tudo num só lugar.

Os primeiros sinais da mashup culture estão por toda parte. As antigas classificações já não dão conta da complexidade da realidade social. É só olhar ao nosso redor. Como classificar um festival como Burning Man, por exemplo? Todos os anos, o evento criado no final dos anos 1980, no deserto de Black Rock, inicia a jornada com a queima pública de uma escultura gigante de um homem. Incendeia-se a ideia moderna do indivíduo como algo único, homogêneo e previsível. Dá-se início a uma nova vida. Há baladas para os que as curtem. Shows intermináveis em paralelo. Bebida alcoólicas para os que gostam. Meditação para os que buscam autoconhecimento. Acupuntura para desintoxicação e outras atividades mil à disposição daqueles que estão dispostos a enfrentar uma semana no meio do nada. Todos por um e um por todos. Burning man queima as velhas estruturas e permite o surgimento do novo construindo a partir do conjunto de referências levadas pelos participantes. Burning Man é tudo num só lugar.

A mashup culture cria conexões inimagináveis. Antes o acesso a determinados contextos sociais era resultado do nosso lugar social (origem, trabalho, estado civil, geração, sexo etc.). Hoje, com um celular nas mãos, podemos tudo. Não há mais assuntos interditados, barreiras de classe na aquisição de um determinado conhecimento, empecilhos por conta das distâncias regionais ou algo que nos seja proibido por conta da idade ou estado civil. O único mandamento da mashup culture é incluir, aceitar o novo e integrar a novidade a nossa identidade de maneira harmônica como se fosse nosso, autêntico, desde sempre.

João Lucas pós-smartphone é um exemplo claro desse processo. É apaixonado por AC/DC do mesmo jeito que ama o funk carioca, joga o último lançamento da Fifa pelo streaming e sonha com uma camisa da Supreme. Foi pelo celular conheceu sua mulher na outra ponta do País. Foi por lá também que comprou uma passagem para visitá-la — o primeiro de sua família a viajar de avião. Com o aparelho, alugou a casa em mora, comunicou a mãe que iria casar, fez cursos online e assiste a várias séries no Netflix. Agora, deseja conhecer o Burning Man, anda lendo manuais de sobrevivência no deserto e planeja a ida. João Lucas já não se enquadra em nenhum dos padrões clássicos de classificação. Sua vida é um caleidoscópio identitário. A cada toque no celular, mais referências compõem o seu eu. Seu único dilema é ligar as peças de maneira que façam sentido. João Lucas é um artesão de si mesmo na era da mashup culture. Ele é tudo num só lugar.

 

*Créditos da imagem no topo: ViewApart/iStock

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