As raízes militares do marketing

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Opinião

As raízes militares do marketing

Ressentimentos, desintermediação e contradições marcaram o período pré-eleitoral, o de transição e esses primeiros dias de governo


23 de janeiro de 2019 - 13h37

Crédito: Erhui1979/iStock

Nasci no início dos anos 1970, no meio da fase mais dura da ditadura militar. Quando comecei a entender realmente o que se passava no Brasil naqueles anos de chumbo, já era uma adolescente que curtia Duran Duran, Echo & The Bunnymen, Eurythmics, George Michael e U2 e que se empolgava com o movimento das Diretas Já. Aí veio a abertura democrática e, aos poucos, os militares foram ficando para trás. Pessoas de minha geração começaram a conviver com eles muito mais como uma imagem que foi ficando ao fundo, nos acompanhando à distância no espelho retrovisor de uma longa viagem de carro.

Mais de três décadas inteiras se passaram e cá estamos neste início de 2019 com eles de volta ao poder. Protagonistas que achávamos (pelo menos na minha bolha, é bom salientar) que haviam ficado lá nos idos de 1980. Na roupagem atual, vieram acompanhados de outros atores forjando um caldeirão cultural composto por segmentos da sociedade brasileira que, embora busquem a hegemonia, são oriundos de lugares bem distintos.

É bom lembrarmos que militares e poder são membros de um mesmo corpo chamado Estado. Têm uma conexão atávica e histórica. Fazem parte dos revestimentos mais profundos da civilização desde tempos antigos. Não por acaso, o belicismo é fonte de boa parte da formação do marketing que conhecemos e que é ensinado nas escolas. Tais conceitos são o alicerce do pensamento estratégico que permeia a gestão de inúmeras empresas e marcas. Uma boa parte deles teve seu surgimento como conhecemos hoje em meados do século passado, nos Estados Unidos. Para ser mais exata, nos anos 1950, logo após a Segunda Guerra Mundial. Isso explica porque uma série de metáforas militares faz parte do glossário da indústria da comunicação.

Empresas e agências olham para as pessoas que compram os seus produtos como “público-alvo”, e não como seres humanos. Alvos remetem sempre a algo que deve ser atacado e nunca abordado de forma a ser conquistado com diálogo. Quando se quer desenvolver táticas de abordagem de mercado para driblar restrições, e de forma rápida, é a vez de colocar em ação um plano de “marketing de guerrilha”.

O livro A Arte da Guerra, de Sun Tzu, é leitura obrigatória nos cursos de marketing para entender o “mercado” como se ele fosse um território bélico. As estratégias e táticas que envolvem o desafiante processo de comunicação, não raro, são chamadas de “batalhas”. Em tempos de redes sociais e de mundo 24/7, a cobertura em real time de eventos ao vivo ou de acompanhamento de crises exigem a criação de um … war room.

O acrônimo VUCA (do inglês Volatility, Uncertainty, Complexity, Ambiguity), muito usado para explicar o ambiente instável do mundo contemporâneo, tem origem no exército norte-americano. No início dos anos 1990, o US Army War College decidiu adotá-lo como forma de ajudar seus alunos (tipicamente oficiais militares de alta patente) a caracterizar a turbulência que enfrentariam naqueles tempos de apagar das luzes da Guerra Fria e início da ascensão tecnológica, configurando a nova geopolítica global. A recente popularidade da sigla deriva do aumento de sua aplicação por setores da sociedade civil que viu nela utilidade para auxiliá-los a entender seus desafios e oportunidades.

Esse repertório teceu uma camada invisível no inconsciente coletivo dos profissionais dessa indústria e nos gestores das empresas. O resultado é que mesmo com toda a transformação da sociedade em rede que permeia o século 21, no qual o comando e o controle (outro conceito militar), que antes estavam na mão de quem emitia a mensagem foi transferido para as pessoas de forma horizontal.

Com algumas exceções, a comunicação das marcas tem conseguido captar esse fenômeno em velocidade menor do que a resposta da sociedade a essa mudança. Como consequência, há um enorme desencontro entre o que faz parte do universo das conversas e dos sentimentos dos indivíduos e o que as empresas comunicam.

Outro componente de complexidade deste século é que ele foi inaugurado com os ataques de 11 de Setembro, dando início a uma era que escancarou o impacto geral do terrorismo internacional e gerando debates sobre o papel do aparato militar na sociedade moderna. De longe, a indústria bélica é a que movimenta a maior circulação de dinheiro no mundo e financia vários governos de estados democráticos como os Estados Unidos de Donald Trump.

No Brasil, pode-se trocar terrorismo por violência, altos índices de criminalidade, domínio de facções e milícias e se tem contexto semelhante que justifica o crescimento da presença de militares na sociedade. Um exemplo disso é a intervenção no Rio de Janeiro, ocorrida muito tempo antes da ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, catapultado em boa parte exatamente por sua agenda dura em relação à segurança pública.

O fato é que a despeito dessa onipresença dos militares na nossa vida, hábitos e formação, as dinâmicas sociais atuais impõem desafios não só para quem tem patente como também para os civis. O recente movimento dos ‘coletes amarelos’ na França explicita esse processo, marcado pela falta de lideranças, agenda difusa e mobilização via rede sociais. Em entrevista à Folha de S. Paulo, o sociólogo francês Albert Ogien declarou que, quanto menos o coletivo (que não destacou porta-vozes nem consolidou uma pauta única) negociou com a gestão Emmanuel Macron, mais este cedeu.

No entender do pesquisador do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica), na ausência de líderes, na agenda pletórica e no uso ostensivo da internet para difundir palavras de ordem e imagens de alto valor simbólico (os coletes amarelos fazem uma referência ao acessório obrigatório em carros que circulam na França), a sequência de atos espelhou muito do que foi a paralisação dos caminhoneiros no Brasil em maio do ano passado.

Como a comunicação pública transita em dimensões do comportamento humano que vão muito além do consumo, aspecto de domínio da comunicação mercadológica, uma eficiente leitura desse contexto foi um dos fatores que levou o atual governo ao poder. A cerimônia de entronização de Bolsonaro, no dia 1º de janeiro, foi tecida de símbolos importantes dessa nova era: jornalistas confinados; a massa que foi assistir à posse gritando WhatsApp!, Facebook!; e atiradores de elite prontos para eliminar qualquer alvo que supostamente gerasse ameaça. As cores são outro ponto importante do manual militar e dos grupos que o apoiam: verde-amarelo e vermelho; azul e rosa. O objetivo é dar ordem e buscar unidade a um corpo cuja variação e diversidade não são permitidas.

Ressentimentos, desintermediação e contradições marcaram o período pré-eleitoral, o de transição e esses primeiros dias de governo. Como no marketing, táticas militares são eficientes para atingir objetivos de dominação, mas se mostram pouco flexíveis quando entram em cena habilidades cada vez mais estratégicas e valorizadas em ambientes complexos e difusos: tolerância, diálogo e abertura ao contraditório.

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