O homem que falava não

Buscar
Publicidade

Opinião

O homem que falava não

Quanto mais ele falava, mais natural ficava; chegou até a desenvolver um gosto pela coisa. Ao contrário do que pensou um dia, a vida dos pidões não mudava em nada, mas a sua ficava melhor


23 de janeiro de 2019 - 12h40

Crédito: Khosrork/iStock

Nos seus tempos de trainee, Jorge era conhecido na empresa como o cara que ajudava todo mundo. Estava sempre disponível para melhorar o PowerPoint de um, acertar as fórmulas do Excel de outro e revisar o Word daquele que nem trabalhava com ele. Todos o adoravam no escritório.

Em casa, não era diferente. Jorge regava a plantas da vizinha da esquerda, cuidava do cachorro do vizinho da direita e pegava a correspondência de todos os moradores quando o porteiro estava de folga. Todos o adoravam no condomínio.

Jorge adorava ser adorado também. Ele tinha certeza que só era querido daquele jeito porque era assim, disponível. Mas, com o tempo, a vida de Jorge mudou. Ele foi promovido algumas vezes e acumulou muitas responsabilidades no trabalho. Agora tinha uma equipe, reuniões dos gerentes, viagens internacionais e muito mais. Em casa, as coisas mudaram ainda mais. Ele se casou, teve filhos e adotou um cachorro.

O tempo ficou curto, mas Jorge, que adorava ser adorado e valorizava ser disponível, continuava tentando ajudar todo mundo que precisava no escritório e fora dele.

Jorge começou a se complicar quando passou a não dar conta do trabalho. Por ajudar todo mundo, não sobrava tempo para o que realmente importava. Os projetos começaram a atrasar e as vendas diminuíram. O chefe de Jorge finalmente deu-lhe um ultimato: ou melhora, ou você está fora.

Em casa, mais ou menos na mesma época, as coisas ficaram igualmente complicadas. Jorge não tinha tempo para levar as filhas na escola e no dentista e quase não parava em casa. O cachorro, sempre que chegava, latia brabo por achar que ele não morava lá. Depois de muito pedir que ele prestasse mais atenção na família, e não mais em ajudar nos vizinhos, sua esposa finalmente deu-lhe um ultimato: ou muda, ou teremos problemas.

Mas dizer não era muito difícil para Jorge. Sentia-se mal e tinha certeza que, quando se recusasse a ajudar os amigos, todos o abandonariam. Mas entre ajudar os amigos ou perder a família e o trabalho, não teve opção. Precisava pôr um fim à exploração do seu trabalho voluntário.

A primeira vez foi bem estranha e a culpa quase intolerável. Seu vizinho pediu que Jorge fosse buscar o seu filho na escola. Jorge disse, com a calma que só Jorge tinha: “não vai dar não”. Mas por que, retrucou o vizinho. Porque essa é a sua obrigação de pai e porque o filho é seu. O vizinho não falou com ele por duas semanas, mas depois voltou tudo ao normal. Ele nunca mais pediu nada.

Foi difícil, mas Jorge mandou o seu primeiro não. Quando a secretária pediu ajuda com uma apresentação e Jorge disse que não tinha tempo, ela não acreditou. Mas por que? Porque esse é o seu trabalho e se eu fizer, você nunca aprenderá a fazer sozinha. Assim como o vizinho, a secretária não falou com ele por duas semanas, mas depois voltou tudo ao normal. Ela nunca mais pediu nada.

Jorge sofreu um pouco menos dessa vez quando falou seu segundo não. Dessa vez, com um pouco menos de culpa.

Jorge recebia dezenas de pedidos de reuniões e ligações por semana. No passado, atendia a todas as solicitações. Mas, desde que se tornara um falador de nãos, decidira que seria mais seletivo com as reuniões que participava. Continuou respondendo todos os pedidos, mas a maioria agora era apenas um educado “não há interesse”. Nada mudou no seu relacionamento com os fornecedores.

Não é que esse negócio de falar não funciona mesmo? Falar não nunca foi fácil para Jorge, mas quanto mais ele falava, mais natural ficava. Chegou até a desenvolver um gosto pela coisa. Ao contrário do que pensou um dia, a vida dos pidões não mudava em nada quando recebiam seus nãos. Mas a sua ficava melhor a cada não que falava. Cada não representava uma hora a mais para Jorge fazer o que importava no trabalho ou em casa.

Se você ainda não tem seu músculo do “não” desenvolvido, pratique. A vida do Jorge mudou e a sua vai mudar também.

 

*Crédito da foto no topo: Dom J/Pexels

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • Negócios do futuro

    Equilibrando inovação, ética e rentabilidade no mundo corporativo contemporâneo

  • Dos monstros da nossa cabeça

    É preciso acessar camadas mais profundas de nós mesmos, por mais que os processos sejam, muitas vezes, dolorosos