Chatos não entram

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Opinião

Chatos não entram

A verdade é que ser ouvido no meio de um rio cada vez mais caudaloso de informação é difícil mesmo, mas não impossível


10 de fevereiro de 2020 - 13h13

(Crédito: Vivali/iStock)

Cada vez mais ouço pessoas reclamando de déficit de atenção — que não conseguem se manter focados por muito tempo em determinado assunto. Que devem estar overloaded, overstressed, overburdened. Outras contam que têm a sensação, já reproduzida em muitos filmes, de ver a boca de outra pessoa se mexer, mas não ouvir nada e acham que é falta de concentração. E tem ainda os casos mais comuns: jovens achando que já têm o mal de Alzheimer ou demência por não se lembrarem do que assistiram, ouviram ou leram há menos de 24 horas.

Eu mesma já flertei com todas essas ideias. Ainda bem que tenho uma filha de 12 anos para me orientar. Olhar crianças e adolescentes nos mostra como somos antes de crescer e esquecer dos nossos desejos e comportamentos mais normais. Como se desinteressar por coisas desinteressantes.

Comportamento por mim batizado de DDAS: déficit de atenção seletivo. Ou, sendo ainda mais clara: déficit de atenção em coisas chatas. Incapaz de parar quieta, minha filha sempre foi capaz de passar até três horas sentada, grudada em um filme na TV. Quando cresceu e passou a não me ouvir, passei a enviar WhatsApp, que ela sempre responde.

Nunca vi minha filha reclamar de aula prática, de atividades fora da escola, estudos do meio ou de filmes que ensinam pelo YouTube. Agora, vai perguntar sobre copiar matéria, para ver. Quando ela não consegue estudar sozinha, estuda por FaceTime com um colega e tem ótimos resultados.

E, assim, baseando-me na máxima “todo adulto é uma criança contrariada”, passei a perguntar a todos que vinham cansados, sem energia e desmemoriados se o assunto causador da infelicidade era, de fato, interessante ou se havia sido apresentado de um jeito diferente. Em 99% das vezes, a coisa parecia bem chata, o que confirmava minha tese do DDA.

Tempos depois, soube que o que descobri sendo mãe, a universidade de Michigan descobriu em 2005. Com ajuda de uma consultoria, descobriram que seus alunos estavam tendo notas baixas por não se entreterem com a lousa — já naquela época, 100% dos alunos passavam 60% do dia em frente a uma tela. E olha que naquele ano o YouTube estava nascendo.

Muita gente vai dizer: “Mas a vida também é feita de coisas chatas.” Sim, é. Mas sua marca não quer ser. Não precisa ter conversa chata nem experiências chatas, já que nunca houve tantos modos de deixar uma mensagem interessante. Do estudo da universidade de Michigan para cá, as ferramentas e plataformas para crianças e jovens cresceram tanto que se chegou à educação midiática. Uma visão inserida em muitas disciplinas que, além de ensinar a produzir conteúdo bacana, ensina como consumir jogos, filmes, quizzes, séries e aulas, sabendo separar fatos de opiniões.

E o que já está alarmando educadores tem que alarmar também empresas e marcas, porque a experiência nunca foi tão importante para o consumidor. Alarmar, principalmente, aqueles com pouca autocrítica, que ainda acreditam que todos que não prestam atenção na sua comunicação ou na sua conversa, sofrem de DDA. A verdade é que ser ouvido no meio de um rio cada vez mais caudaloso de informação é difícil mesmo, mas não impossível. O jornalismo, por exemplo, fez como muitas mães (não sou só eu, tá?) e foi para o WhatsApp para que suas pílulas urgentes fossem lidas. Também parou de brigar com quem não tem tempo ou “saco” para a leitura e abraçou o podcast.

Na moda, o modelo DNVB (digital native vertical brand) de e-commerce fashion, que cresce a olhos vistos, tem lojas deliciosas para se provar roupas, mas que só vendem pela internet. Logística perfeita para garantir uma experiência legal para o cliente com rentabilidade para a empresa.

A indústria do cinema está se reinventando, haja vista a quantidade de filmes da Netflix concorrendo ao Oscar. E, por falar nisso, outro dia levei minha filha a um evento da Netflix que promovia, bem, promovia as séries e filmes da Netflix. O que importa é que as meninas adoraram a experiência e acharam incrível o fato de ser de graça. Tentei explicar o ainda inexplicável para elas: nada é de graça. Mas, quando a experiência é boa, a gente não vê a cobrança. Exemplos não faltam para o óbvio: as pessoas prestam atenção no que elas gostam. Boa notícia para as mentes criativas que entenderem os novos comportamentos e que não forem chatas.

*Crédito da foto no topo: Kaboompics.com/Pexels

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