A palavra me encanta

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Opinião

A palavra me encanta

Veja: a expressão ‘textão’ guarda uma não leitura em si mesmo. Na busca por uma linguagem global, as palavras foram dando lugar às imagens. Fomos diminuindo o apreço pela escrita. E já quase deixamos de escrever


4 de agosto de 2020 - 13h18

(Crédito: Marcos Medeiros)

Esse papo já tá qualquer coisa
Você já tá pra lá de Marrakesh
Mexe
Qualquer coisa dentro, doida
Já qualquer coisa doida
Dentro mexe
Não se avexe não
Baião de dois
Deixe de manha, deixe de manha, pois
Sem essa aranha, sem essa aranha
Sem essa aranha
Nem a sanha arranha o carro
Nem o sarro arranha a Espanha
Meça, tamanha, meça, tamanha
Esse papo seu já tá de manhã

Dos versos de Caetano, a inspiração para nomear este espaço, a beleza e a estranheza da língua portuguesa na sua simplicidade profunda. Particularmente, adoro este final: “Esse papo seu já tá de manhã”. Gosto da sensação de uma conversa confusa que você consegue prever o final. Aprendi com os discos dos meus pais a valorizar a palavra além dos livros, talvez um pouco tarde. Meu pai, jornalista, insistia para que eu prestasse atenção nas letras dos encartes, mas eu era um moleque insolente e queria saber da música americana sem ir pro baile todo fim de semana. Queria o delta do Mississipi, Chicago e me esquecia do Cariri, de Salvador, do Rio. Mais adiante, prestei atenção nas letras do Melodia, e um universo inteiro se abriu.

Quando ouvi “Eu canto, suplico, lastimo, não vivo contigo. Sou santo, sou franco, enquanto não caio, não brigo”, comecei a associar com os discos que tocavam na casa, com as fitas cassete do carro, com uma viagem do Recife ao Crato (que teve João Gilberto na ida e Caetano na volta), com os shows que eu via desde pequeno. A música sempre esteve presente, mas as letras se revelaram tempos depois. Ao admirar a escrita dos nossos letristas, passei a prestar mais atenção na palavra cantada, nos sons que algumas sílabas podem ter. Encontrei um novo amor, reforçado nas miudezas de falar alto “pipoca”. Pipoca tem som, tem estouro, vira verbo, tem gosto de infância, explode. Pira, que significa pele em tupi, e poka, que significa estourar. Palavra-onomatopeia, bonita que só.

Falo disso tudo porque a palavra me encanta. Porém, desde que comecei no mercado como redator, escuto que ninguém lê. Especialmente texto grande. Veja: a expressão “textão” guarda uma não leitura em si mesmo. É um aviso que as figurinhas que circulam nas redes reforçam: vou esperar sair o filme; só li a metade. Na busca por uma linguagem global, as palavras foram dando lugar às imagens. Fomos diminuindo o apreço pela escrita. E já quase deixamos de escrever.

Daqui faço um salto para o lado mais ensolarado da história.

Tudo aconteceu rápido demais, de sopetão. Conheci o Felipe Silva e a sua Escola Rua, fechamos um curso sobre redação. E, assim, me vi na posição de pensar sobre a escrita como nunca havia feito. Determinei que não seria sobre redação publicitária porque há nela muitas restrições. Quis voltar ao ato básico: papel em branco, tela em branco, preencher com pensamentos, ideias. Soltura. E, sem refletir, coloquei uma questão forte demais para o primeiro exercício: Por que eu escrevo?

A sensação de ter pesado a mão ficou ainda mais forte quando me deparei com uma resposta do Fernando Sabino: “Tenho a impressão de que, se eu soubesse responder a essa pergunta, deixaria de ser escritor. Não haveria condição. Não saberia dizer, não. Está além da minha compreensão. Esta pergunta é tão grave como se perguntassem: ‘Por que vive? Por que ama? Por que morre?’”. Acontece que o sol bateu, as respostas vieram, e as palavras são as deles.

Os trechos a seguir foram escritos pelos alunos da turma.

Há de cada um, uma parte

Sinceramente eu não sei, só escrevo. Veja bem, nosso País não valoriza nem um pouco quem escreve. Escrever é uma válvula de escape em meio à confusão, é uma forma de expressar alegria, tristeza, paixão. Quando escrevo, entendo melhor a mim mesma, entendo coisas que sinto, mas que não via com clareza. Escrever nos dias de hoje pode ser um caos ou um alívio. É um momento em que eu materializo palavras que a minha boca covarde não teve coragem de pronunciar. Escrevo porque, às vezes, a melhor voz a seguir é a nossa.

Um nome na última folha do caderno, um título de uma peça, uma lista de tarefas, uma palavra. Tudo é sobre histórias. E eu escrevo porque sou apaixonada por elas e quero contar as minhas. Escrevo porque meus pensamentos transbordam, as palavras saltam direto para o papel e lá elas fazem sentido. Escrevo porque quero tocar a alma, quero fazer com que a imaginação flua, quero sentir um cheiro, um gosto, uma emoção.

Escrevo porque tenho os pés na areia e a cabeça nas nuvens. Escrevo para me encontrar, e assim será. Escrevo com a intenção de concluir a missão, encontrar a paz. Quando escrevo posso mergulhar em um universo que não é meu, mas que passa a ser. E, talvez, de um jeito que ninguém ainda tenha visto. Eu escrevo para ser vista, para me mostrar, para me expor. Escrevo por não poder gritar. Escrevo por não poder quebrar. Escrevo por amar.

Fim desses belos trechos

Todas essas palavras vieram quando alguns diziam ter receio de escrever. Ou que era um hábito esquecido. O verbo transbordar surgiu em alguns textos, e eles transbordaram cada qual a sua maneira. E dessa água fez-se nuvem, da nuvem surgiram novas formas de desaguar. Vieram histórias, cartas, ritmos, desrespeito às regras e novos significados para palavras.

A palavra me encanta porque é onde encontro Chico, Caetano, Rita, Gil, Cartola, Machado, Clarice, João do Rio e tantos mais. E encontro também as pessoas que o acaso me levou. Quando há muito na cabeça, faço das palavras um fluxo, um rio que leva meus pensamentos. Assim, partindo de uma água barrenta, tento chegar a um lugar mais cristalino. É importante escrever, mesmo que ninguém leia, para tirar de si. E acho importante ler por acreditar que a palavra precisa do calor do leitor para, assim, estourar a beleza do que estava contido, que nem pipoca.

*Crédito da foto no topo: Eugenesergeev/iStock

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