Um triste retrocesso

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Opinião

Um triste retrocesso

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostram que a participação das mulheres no mercado de trabalho é a menor em 30 anos


3 de novembro de 2020 - 10h59

(Crédito: Reprodução)

Minha filha sempre se surpreende quando digo que vou participar de mais um debate sobre equidade de gênero nas empresas — para ela, que está no fim da adolescência, o fato de ser mulher jamais seria um fator limitante das suas oportunidades. Confesso que, até outro dia, eu via nesse estranhamento um sinal positivo: várias gerações anteriores de mulheres vêm fazendo um bom trabalho em pavimentar o caminho para a geração dela, a fazendo acreditar que encontrará um terreno profissional mais diverso e que, com essa preocupação atenuada, poderá se dedicar a outras lutas.

Mas o fato é que a manchete do Estadão de domingo, 23 de outubro, nos jogou um balde de água fria. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a participação das mulheres no mercado de trabalho é a menor em 30 anos. Segundo a reportagem, a sobrecarga nos cuidados com a casa e a família no contexto de pandemia, com escolas fechadas para aulas presenciais e mudanças na dinâmica doméstica, fez o total de mulheres ocupadas ou em busca de um trabalho cair para 46,3% no segundo trimestre deste ano, o menor patamar desde 1990. Isso me faz pensar em duas coisas: no privilégio que tenho e em como posso utilizá-lo para ajudar a reverter esse quadro.

Tenho total consciência de que falo de um lugar muito distante da maioria das mulheres brasileiras. Faço parte de uma empresa que se preocupou desde o primeiro dia com a saúde e a segurança das pessoas que lá trabalham — e não estou falando somente de saúde física frente à ameaça da Covid-19, mas também da saúde mental. Temos horários flexíveis, programas de apoio a funcionários e funcionárias que estão enfrentando os mais diferentes desafios pessoais neste período e somos presenteados com dias de folga uma vez por mês, quando paramos globalmente para repor as energias. Além dos cuidados na pandemia, o Twitter tem, no mundo, metas estabelecidas para a presença de mulheres não apenas na força de trabalho como um todo, mas também na liderança e em cargos técnicos. No Brasil, ainda que não possamos abrir dados específicos, nós, mulheres, somos maioria no escritório e na diretoria. Esses são meus privilégios.

E qual pode ser a minha contribuição? Eu tinha outro tema a explorar aqui neste espaço hoje, mas mudei de ideia depois de ver a matéria do Estadão. Imagino que, entre os leitores de Meio & Mensagem, haja empregadores e gestores, homens e mulheres, capazes de refletir e fazer parte de uma mudança. Na necessidade de fazer uma redução de jornada e salário, ou mesmo de cortar sua folha de pagamento, que critérios você tem utilizado? Você está considerando a equidade de gênero não apenas na contratação, mas também na remuneração e na eventualidade de uma demissão na sua empresa ou departamento? Qual é o nível de pressão por entrega e presença em reuniões no caso de suas funcionárias que estão tendo de cuidar da casa e dos filhos? Como está a flexibilidade de prazos e horários?

Sei que temos de continuar a produzir. Há contas a pagar, o negócio precisa prosperar — afinal, sem isso, seria ainda maior o número de pessoas sem emprego. Mas considerar a situação em que nossos funcionários, e especialmente funcionárias, estão agora é fundamental para garantir um futuro mais sustentável para todos. Incontáveis estudos vêm comprovando com fatos e dados o que não canso de repetir em minhas palestras: diversidade (e não apenas de gênero) é boa para a economia, para os negócios e para a sociedade. Sem um olhar cuidadoso e uma intervenção rápida para endereçar os impactos desproporcionais da pandemia nas mulheres, veremos todo o progresso regredir.

Todos sabemos que só sonhamos com aquilo que conseguirmos ver. Além dessa provocação a quem tem poder de ajudar a mudar esse triste rumo em que estamos, quero usar minha voz, meus espaços e meus fóruns para mostrar às mulheres que perderam a esperança que é possível, sim, voltar ao mercado de trabalho. Sinto muito, minha filha, mas a mamãe ainda vai tocar nesse assunto muitas e muitas vezes até que a gente conquiste o lugar que merece.

*Crédito da foto no topo: Frimages/iStock

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