Desafiando o status quo

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Opinião

Desafiando o status quo

Embora racismo no Brasil ainda seja assunto sensível e cheio de arestas, é imperativo falar a respeito


22 de abril de 2021 - 13h56

(Crédito: Alashi/ iStock)

“Deve-se viver a vida olhando para a frente, mas só se pode entendê-la olhando para trás”.

 

Kierkergaard

Uma notícia vinda da Austrália no início de abril chamou a atenção sobre como a sociedade tem se transformado recentemente. E não estou me referindo à apresentação da banda MIdnight Oil para mais de 13 mil pessoas em um show que nos fez morrer de inveja do país cujos líderes não subestimaram o coronavírus em nenhum momento e foram bem-sucedidos no controle da pandemia a ponto de poder voltar a ter eventos presenciais. A notícia em questão é sobre a trajetória do brasileiro naturalizado australiano Héritier Lumumba.

Em 2013, quando era destaque do Colingwood, importante time de futebol australiano — esporte mais popular daquele país, uma mistura de rugby e futebol americano — Lumumba respondeu, no Twitter, uma piada de Eddie McGuire, presidente do clube e homem influente da mídia australiana, sobre aborígenes e o filme King Kong. Ele havia comparado um jogador de origens indígenas ao gorila, dizendo que ele seria uma boa opção para promover a estreia do musical.

Em entrevista ao jornal O Globo, Lumumba contou que o dirigente fez essa piada e ninguém no clube ou da liga falou nada: “Foi como se nada tivesse acontecido. Não foi uma coisa dita por qualquer um na rua, saiu do cara que é considerado um dos mais poderosos no país. E, para mim, quando se combina uma posição como a dele, de poder, com racismo, é algo muito perigoso. E as pessoas ao meu redor trataram como se fosse nada”.

E revelou mais um desdobramento. “Foi o começo de outro grau de racismo que tive que enfrentar. Pessoas em posição de liderança falaram que eu estava errado e que o traí. Tentaram me empurrar essa história de que foi ‘mimimi’ da minha parte. Pelo que eu reparo, racistas têm as mesmas perspectivas no mundo inteiro”, avalia o ex-atleta.

Já aposentado, ele voltou ao tema no ano passado, quando a onda de protestos do movimento “Vidas Negras Importam” chegou à Austrália. Ao questionar, também via redes sociais, as postagens da liga australiana e de clubes, como o próprio Colingwood, pedindo respeito e apoiando os protestos, o brasileiro relembrou sua história. E o novo momento da sociedade desencadeou uma onda de acontecimentos em que sua dor foi reconhecida.

As denúncias de Lumumba explodiram o clube recentemente. Uma investigação independente chegou à conclusão de que havia racismo sistêmico na instituição. Três dias após a publicação, McGuire, renunciou ao cargo.

Nascido na comunidade da Serrinha, em Madureira, filho de uma manauara que morava no Rio com um imigrante angolano, Lumumba mudou-se para a Austrália pouco antes de completar os três anos de idade. O ex-atleta conta hoje com advogados em conversa com a equipe jurídica do Collingwood, para avaliar uma indenização. Graças ao episódio, ignorado depois de pouco tempo na época, ele deixou o clube no ano seguinte, e seguiu jogando até dezembro de 2016.

O reconhecimento da dor de Lumumba demorou oito anos e deixa claro como é importante o processo de identificação dos problemas e suas consequentes e necessárias  reparações. Algo que o Brasil tem dificuldade de fazer.

Poucos dias separam o relato do ex-jogador de futebol australiano em alguns jornais daqui de um outro relato, o do professor de geografia João Luiz, televisionado para a imensa audiência do Big Brother Brasil 21. Ao ter seu cabelo comparado ao da peruca da fantasia de homem das cavernas pelo seu companheiro de confinamento, o cantor Rodolffo, João Luiz verbalizou a dor pela qual passam desde muito cedo milhões de pretos e pretas. Ele chegou a chorar ao comentar sobre a forma como a comparação o afetou.

A TV Globo, no entanto, perdeu uma enorme oportunidade de classificar o caso como de fato é:  um ato racista. A palavra racismo não foi sequer mencionada pelo apresentador Tiago Leifert ao se referir ao assunto e explicar a Rodolffo, no episódio no qual seria eliminado minutos depois. Leifert se resumiu a dizer apenas que sua comparação era errada e carregada de preconceitos.

Claro que a repercussão foi gigantesca dentro e fora da casa a ponto de a Globo ter sofrido pressão por parte dos anunciantes do programa e ter criado um canal mais estreito de escuta para lidar com problemas “fora do script”, que nada mais são do que os problemas da vida real, reflexos de uma sociedade dividida, desigual e violenta. Bem distante daquele imaginário idílico do brasileiro cordial deitado no berço esplêndido da democracia racial. O que Rodolffo cometeu com João Luiz foi muito além de preconceito. Todo mundo tem preconceito e discrimina, mas as estruturas de opressão vão além dos indivíduos.

A norte-americana Robin Diangelo, autora do best-seller Não basta não ser racista. Sejamos antirracistas, pontua com maestria essa diferença: “(…) o racismo – tanto quanto o sexismo e outras formas de opressão – se dá quando o preconceito de um grupo social é apoiado pela autoridade legal e pelo controle institucional. Essa autoridade e esse controle transformam os preconceitos individuais em um sistema abrangente que deixa de depender das boas intenções dos atores sociais; eles se transformam no padrão da sociedade e passam a ser automaticamente reproduzidos”.

Como agentes de propagação, influência e reprodução de padrões, a mídia, as marcas e seus gestores externos, as agências, têm um papel central nesse processo de transformação. Processo que vai ao encontro do tema central da edição de aniversário de 43 anos de Meio & Mensagem. E essa transformação tem um imperativo extremamente poderoso: as pessoas e a sociedade – que estão mais conscientes e têm mais voz para expressar suas posições e opiniões.

Diferentemente do caso de Héritier Lumumba, que demorou oito anos para ter sua situação de racismo retratada em um país, que embora colonizado, tem um histórico bastante diferente do Brasil, por aqui esse ainda é um assunto muito sensível e cheio de arestas. Embora falar de racismo seja desconfortável, especialmente para a maioria dos brancos, sua necessidade é imperativa se quisermos desafiar – em vez de proteger – o racismo. Evitar falar de racismo apenas fará assentar nossa desinformação e nos impedir de desenvolver as competências necessárias para desafiar o status quo.

*Crédito da foto no topo: Novendi Dian Prasetya/iStock

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