Novas fronteiras da experiência

Depois de meses de intensa readaptação, do estoque à interface de apps e sites, varejistas investem na inovação para alavancar a conveniência do consumidor em qualquer ambiente

Por Isabela Lessa e Salvador Strano

Passados mais cem dias desde o início da quarentena, tornou-se mais do que óbvia a noção de que a pandemia obrigou anunciantes a intensificarem suas capacidades e ofertas no digital. De todos os segmentos, porém, o varejo talvez carregue os exemplos mais emblemáticos. Afinal, apesar dos avanços do e-commerce nos últimos anos, parte considerável da experiência do setor continua bastante atrelada ao físico e ao diálogo presencial entre vendedor e clientes. Justamente pelo fechamento de portas dos estabelecimentos físicos — exceção feitas aos essenciais —, as varejistas foram impactadas não somente sob o aspecto econômico, mas pela inevitável necessidade de concentrar operações no online.

Em comparação com março, a queda de vendas em abril foi de 16,8%, a maior da série histórica iniciada em janeiro de 2001, de acordo com a Pesquisa Mensal de Comércio, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No entanto, a entidade apontou que, em maio, as vendas tiveram alta de 13,9% ante o mês anterior — resultando no melhor índice da série histórica. A recuperação pode ser explicada, em parte, pela resposta do comércio diante do fechamento de lojas e estabelecimentos físicos: foco nas plataformas digitais para continuar oferecendo seus serviços e produtos aos consumidores.

Rodrigo Marcondes, vice-presidente para digital experience da Adobe, área dedicada a soluções digitais para os clientes, pôde observar, desde março, a movimentação de empresas, principalmente as de pequeno e médio porte, para solidificarem suas ofertas de e-commerce. “Particularmente no varejo, pudemos ver um amadurecimento rápido. Enquanto algumas empresas colocaram seus projetos de e-commerce em tempo recorde, outras que estavam habituadas a um ticket médio alto precisaram se adaptar a tickets menores e a um volume maior de transação no site”, afirma. A adesão de milhares de pessoas ao e-commerce — considerando que muitas não tinham o hábito de comprar online — ajudará muitas marcas a expandirem seus faturamentos, indica o profissional.

Intensificação do marketplace
Uma das tendências que o executivo observa é a da junção do marketplace às plataformas de e-commerce das marcas. Nos últimos meses, dois varejistas do segmento de moda intensificaram seus marketplaces que oferecem produtos além das roupas. Em junho, a C&A Brasil expandiu a Galeria C&A, que concentra marcas de outras categorias como The Beauty Box, Valiser e Multilaser. No total, a plataforma tem 19 sellers e a expectativa é que o espaço trabalhe com mais de 30 marcas até o final do ano. No mesmo mês, a Amaro lançou a Amaro Collective, um e-commerce que busca complementar a experiência das consumidoras por meio de produtos para a casa e de cuidados com a pele.

A estratégia, de acordo com Marcondes, da Adobe, é uma forma de abrir oportunidades para empreendedores menores no mercado eletrônico, além de criar insights sobre os diversos perfis de consumo que uma única pessoa tem. “O consumidor consome de maneiras diferentes nos sites A, B ou C, e iniciativas como essa abrem espaço para varejos, inclusive grandes, a ter uma visão única sobre a jornada do cliente”, diz. No Grupo Carrefour Brasil, a atual operação de e-commerce foi lançada em 2010 e, atualmente, possui cinco milhões de produtos e 6,1 mil sellers. “O número de pedidos triplicou no período — atingimos um recorde de 4.269 num único dia. Além disso, verificamos mudança nos canais de entrega do e-commerce alimentar, com entregas em domicílio representando 85% no trimestre (representaram 61% no quatro trimestre de 2019), o maior nível desde seu lançamento”, diz o vice-presidente de relações institucionais Stéphane Engelhard.

Carrefour reforçou estrutura do e-commerce alimentar em 13 lojas físicas com sidestores, áreas dedicadas para atender a demanda digital

Para o lojista, o digital corrobora com a transparência da jornada do consumidor do momento que pessoa começa a buscar o produto em um site até quando ele está indicando o produto para um amigo nas redes sociais. “Essa transparência oferece ao lojista oportunidades únicas de aprender sobre como e porque o consumidor faz sua decisão de compra ou porque deixa de comprá-lo”, afirma Maria Carolina Melo, diretora da Tropic Consulting. Para a profissional, a próxima fronteira para os varejistas é ouvir e aprender a analisar os dados desses consumidores que fizeram a passagem para as compras online, pois, a partir dessa leitura, haverá aprimoramento da experiência.

Um dos principais desafios para o varejo, seja qual for o segmento, é a questão de disponibilidade de estoque. Nos últimos meses, o Carrefour trabalhou para reforçar a estrutura de e-commerce alimentar em 13 lojas por meio de sidestores, áreas dedicadas dentro das lojas físicas para atender a demanda de vendas online. E, em parceria com o Rappi, a rede ampliou a capacidade de entregas por delivery. No total, a empresa contratou cinco mil funcionários neste período para que as operações pudessem atender à demanda. “Nossa estratégia não é canibalizar a venda física: nos colocamos como venda incremental. Não existe distância, não tem por que se preocupar com onde parar o carro, essa é a mágica do online”, diz Fernando Vilela, head de estratégia e performance da Rappi no Brasil. O executivo aposta que a experiência e a conveniência das compras online continuem motivando esse hábito no público, mesmo com a reabertura do comércio físico.

Orgânicos sem intermediários

Startup de orgânicos registrou aumento de três vezes na demanda a partir do mês de março

Além de fazer mais compras online, os consumidores começaram a cozinhar com mais frequência. Diante disso, aumentou a busca por opções de alimentos mais saudáveis. Há seis anos no mercado, a Raizs (lê-se Raízes), startup do mercado online de orgânicos, já vinha em um ritmo acelerado de crescimento, numa média de 300% ao ano. Após a segunda quinzena de março, a operação viu um aumento de três vezes na demanda do consumidor final. Segundo o fundador e CEO Tomás Abrahão, os consumidores já vêm mudando seus hábitos, querendo saber de onde vem o alimento, há algum tempo — o que explica a expansão da Raizs, que prevê faturamento de R$ 20 milhões neste ano — e essa é uma tendência que deve continuar. “Já trabalhávamos com essa expectativa de crescimento há muito tempo, não tem a ver com a pandemia, mas é óbvio que a crise acelerou o mercado de alimentos como um todo”, afirma. Com tecnologia proprietária, a empresa conecta agricultores de todos os estados do País ao consumidor final. Por meio de machine learning, a operação consegue se planejar de acordo com as demandas do produtor e as transições de estoque. No site, que conta com mais de dois mil itens (além de frutas e legumes, há alimentos secos, bebidas, laticínios e produtos para a casa), a pessoa pode optar pela assinatura de cestas ou realizar pedidos avulsos. De acordo com Tomás, uma das prioridades da empresa é oferecer acessibilidade. “Conseguimos preços 25% mais baratos que a média do mercado e conseguimos pagar aos agricultores 20% acima da média porque não temos intermediários, simples assim. No varejo tradicional, o produto passa por cinco mãos”, explica.

Alcance ampliado
Como um app que nasceu com a premissa de se posicionar como um “delivery de tudo”, a Rappi vem ampliando a atuação para segmentos como banking, por meio da Rappi Pay, entretenimento, com os serviços Games, Live Events e Music, e, também, o e-commerce. A vertical de commerce da companhia tem mais de mil lojas cadastradas. O objetivo, segundo Vilela, é que as entregas cheguem no mesmo dia do pedido. A rapidez na entrega também está entre as prioridades da Amazon. Mas, para Juliana Sztrajtman, head de marketing e prime da companhia no Brasil, o consumidor deseja não somente receber o produto com rapidez, mas ter outros tipos de conveniência, como a programação de compras mensais — funcionalidade oferecida pelo app da Amazon — e facilidade na devolução. No começo de julho, a empresa lançou o “Programe e Poupe”, iniciativa para compra de alimentos, produtos de higiene, limpeza e bebidas, cujo lançamento já estava programado para este ano, mas que coincidiu com a alta na demanda das categorias.

“Vimos uma mudança no mix de venda, então, passamos a vender muito mais itens de limpeza para casa, jogos para brincar, itens para home office. Mas, principalmente, alimentos, bebidas e limpeza foram os itens que tiveram aumento na participação das vendas da Amazon, não somente no Brasil, mas globalmente”, afirma Juliana. Essas mudanças se refletiram na própria apresentação do site, que passou a fazer curadorias específicas para facilitar a busca por produtos para se exercitar, cozinhar e cuidar da casa. Também criado no ambiente online, o Mercado Livre inseriu a aba supermercado no site do e-commerce. Hoje, 99% dos produtos no marketplace da companhia são comercializados por empresas (1% são produtos vendidos por pessoas físicas).

Amazon Go e sua experiência de compra sem fricção: proposta da varejista é investir em soluções que melhorem a conveniência do consumidor

Ainda em processo de estruturação do modelo de personalização das ofertas — em 2018, quando foi comprado pelo grupo Advent, ainda sob a bandeira Walmart, a direção da empresa optou por desativar os canais de venda online para reorganizar as lojas físicas —, o Grupo Big acelerou a implementação de um modelo ágil durante a pandemia. Para isso, começou, em março, uma parceria com duas plataformas, iFood e CornerShop. A partir do marketplace das duas empresas, a bandeira oferece compras online enquanto ainda desenvolve uma solução proprietária. “Agora, estamos desenhando uma estratégia digital com duração de três a cinco anos. Neste ano, lançamos nossos próprios aplicativos. Depois, vamos entrar numa operação mais robusta de e-commerce”, afirma Marcelo Rizzi, diretor de planejamento estratégico do Grupo Big. O modelo proposto pela rede deve valorizar lojas físicas como centros de distribuição, sem a necessidade da construção de dark stores para o e-commerce.

Rotina móvel
Antes da pandemia, as lojas C&A também operavam como centros de distribuição para compras online, mas, com o fechamento de mais 280 unidades no início do isolamento, a empresa abriu dark stores para amplificar a capacidade de estoque. O app da C&A, líder de downloads na categoria moda, tornou-se o principal canal de comunicação da marca com o público. De acordo com Fernando Guglielmetti, head de e-commerce da C&A Brasil, o aplicativo passou de 500 mil usuários mensais, em janeiro, para 2,5 milhões, em junho. “O canal que mais investimos é o mobile. Nos últimos dois anos, ocorreu uma inversão total do desktop para o mobile. Antes, mobile era 30% e desktop, 70%, hoje, é o contrário. Sem dúvida, o consumidor tem respondido mais por meio do app”, relata o executivo.

No Grupo Pão de Açúcar (GPA), os aplicativos são responsáveis por promover descontos e prêmios aos consumidores das bandeiras Extra e Pão de Açúcar, sendo uma das principais frentes de atendimento aos clientes. Nos últimos meses, entretanto, foi necessário adaptar a interface desses apps para responder à mudança no comportamento do próprio consumidor após a adoção do isolamento social. E essa movimentação foi feita sem que fosse necessária uma ampliação da infraestrutura tecnológica disponível. Após realizar uma série de estudos com os clientes, a plataforma precisou realocar diversas funcionalidades que respondem melhor ao comportamento adotado pelos que estão em isolamento.

Outra iniciativa da C&A quando as lojas fecharam foi a criação de um canal de vendas pelo WhatsApp, uma solução que, além de se apresentar como mais uma alternativa para os clientes, foi uma maneira de manter ativas as funções dos vendedores de lojas, que continuaram atendendo o público pelo canal. Antes da quarentena, cada unidade da Amaro tinha um número de WhatsApp para falar com clientes próximas. Nos últimos meses, porém, a marca revolveu transformar as vendedoras em influenciadoras para reforçar o tratamento de CRM. “O WhatsApp tornou-se, efetivamente, um canal de vendas, com coleta de pagamento por link, de forma segura”, diz Wellington José, head de customer happiness da Amaro.

Por ser uma ferramenta de comunicação bastante utilizada pelos brasileiros, o WhatsApp funciona como a plataforma de marketplace do Aarim, startup carioca que, durante a pandemia, gerou mais de R$ 3 milhões para os quase cem estabelecimentos parceiros, entre restaurantes, mercados, padarias, farmácias e petshops. “Quisemos fazer algo mais democrático, sem o atrito de ter de instalar um app. Aliás, muitas empresas de telefonia subsidiam o uso do WhatsApp. Pensamos que seria legal colocar um assistente virtual nessa plataforma”, conta Victor Coutinho, CEO e cofundador da empresa.

Amaro lançou a Amaro Collective, e-commerce que complementa sua oferta com produtos para a casa e de cuidados com a pele

Com mais de 1,2 mil programadoras dentro de casa, a Via Varejo implementou o Chama no Zap em cinco dias. Com a solução, os vendedores comissionados das lojas físicas puderam continuar seu trabalho mesmo de casa. A ferramenta corrobora a visão de estratégia de crescimento a longo prazo do e-commerce das bandeiras Casas Bahia e PontoFrio. Segundo a empresa, para ampliar a parcela do digital nas vendas do varejo, será necessário estabelecer uma linguagem altamente humanizada, como no caso da solução recém-lançada, para que a população desbancarizada possa compreender o passo a passo da venda online.

“Esse comportamento é para todos os segmentos do marketplace, não somente para as categorias mais conhecidas de Casas Bahia, como eletrodomésticos e móveis, mas também para categorias não planejadas, com alta recorrência”, explica Ilca Sierra, diretora de marketing e comunicação multicanal da Via Varejo. Também na linha educativa mencionada por Ilca, a Pernambucanas, publicou, em seu canal do YouTube, uma playlist com vídeos com passo a passo para acesso dos aplicativos, conta digital, acesso a fatura, entre outras funcionalidades. Tanto para C&A quanto para Pernambucanas, o WhatsApp também serviu de mostruário de produtos para vendas drive-thru: o cliente recebe fotos e informações sobre os itens, que são retirados em lojas físicas. Para Sergio Borriello, CEO da Pernambucanas, essa é uma opção para os menos adeptos ao e-commerce. Hoje, todas as lojas da rede operam neste formato. Mesmo com a reabertura das lojas, a C&A pretende dar continuidade à retirada na loja. “Isso gerará mais complexidade, pois são processos diferentes, porém, mais conveniência para o consumidor. E, com mais alternativas, esperamos aumentar as vendas”, explica Guglielmetti.

Inovação compartilhada
Ao mesmo tempo em que adaptou a experiência em seus apps, o GPA manteve os projetos de inovação que já estavam em andamento e ampliou suas novas parcerias a partir de provas de conceito com startups e foodtechs. Nos últimos 14 meses, a companhia afirma ter trabalhado com mais de mil startups, divididas em três grandes horizontes de inovação: no primeiro, o objetivo é conseguir tornar processos específicos feitos manualmente em ações automatizadas, apesar de pontuais. Um pouco mais a médio prazo, estão as soluções que trazem adjacências a uma melhoria, sendo possível, inclusive, servir como nova fonte de renda. E, em terceiro, soluções disruptivas no mercado. “Precisamos olhar de maneira transversal esses horizontes. No curto prazo, conseguimos trabalhar muito bem os dois primeiros e, o último, é de médio prazo, que é o que encontramos no James lá em 2018”, afirma o head de inovação Otávio Thomé.

De acordo com Juliana, da Amazon, as inovações da companhia continuarão seguindo as necessidades do consumidor e, cada vez mais, acontecerão com a ajuda de parceiros. “O consumidor pode programar os produtos que deseja a bons preços, ter acesso a programas multibenefícios, como o Prime, que lançamos ano passado, pois une benefícios de compra com entretenimento, com frete grátis, entrega rápida, séries, filmes, músicas, livros e revistas, tudo com uma única taxa mensal. Construímos todas essas inovações com nossos fornecedores, empresas que têm esses produtos, tanto no varejo quanto no marketplace. Juntos, entendemos o que é conveniência para o consumidor”, explica.

Grupo Big iniciou parceria com as plataformas iFood e CornerShop para oferecer compras online enquanto ainda desenvolve solução proprietária

Para varejistas como a C&A, essa conveniência passa por aprender a reagir rapidamente às buscas do consumidor. Apesar de o momento econômico do País exigir atenção, Guglielmetti afirma que a empresa continua priorizando os investimentos em disciplinas como data science e analytcs. A tecnologia, segundo o profissional, está alterando a própria lógica da moda, outrora baseada em coleções outono-inverno. “Isso não funciona mais, é preciso responder às tendências. Temos criado coleções-cápsula para captar o que está acontecendo no momento — e esse é um grande desafio”, diz. Com inteligência artificial, a marca também está trabalhando para diminuir o atrito nas devoluções ou trocas de roupas.

Já o GPA tem buscado soluções de machine learning e Internet das Coisas. No Grupo Big, a inovação não está apenas nos canais de venda da operação. O departamento de marketing da companhia passou, também, por uma reestruturação que permitiu a virada da bandeira e busca, agora, atender à nova marca. Parte dessa mudança foi o maior investimento realizado no marketing digital da companhia, que aumentou quatro vezes desde o início da troca das bandeiras. Com isso, é possível realizar campanhas geolocalizadas nas cidades onde a rede está alterando as lojas.

Em 2020, o Mercado Livre investirá R$ 4 bilhões no Brasil, sendo que a maior parte da verba será destinada à malha logística, uma das principais frentes de ação da companhia. Um dos planos é a construção de um centro de distribuição no Nordeste, similar ao modelo aplicado nos estados do Sudeste, com o intuito de que o mesmo prazo de entrega das compras em São Paulo, de até dois dias úteis, possa ser replicado na região.

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