Márcia Rocha: “A sensação de espanto das pessoas diante de nós ainda é muito grande”

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Márcia Rocha: “A sensação de espanto das pessoas diante de nós ainda é muito grande”

Eleita a primeira Conselheira Seccional trans da OAB, a advogada e fundadora do TransEmpregos dá dicas de liderança e fala sobre como é ocupar uma posição de destaque


3 de junho de 2022 - 10h19

Márcia Rocha é advogada, fundadora do TransEmpregos e a primeira Conselheira Seccional trans da OAB São Paulo (Crédito: Divulgação)

Para muitos, ser uma boa liderança é sinônimo de ter competências técnicas, mas também de dar exemplo, inspirar e ter postura. Para mulheres trans, isso é ainda mais importante, pois há muito preconceito na sociedade e no ambiente corporativo. A necessidade e a pressão por não falhar são maiores. “Levamos dez anos para construir uma imagem que em 15 minutos pode ser destruída”, diz Márcia Rocha, advogada e fundadora do TransEmpregos, maior plataforma de empregabilidade de pessoas trans no Brasil.  

Primeira pessoa trans a conseguir o direito ao uso do nome social na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), extensivo a todos advogados e advogadas, Márcia sente que sua responsabilidade e representatividade perante as pessoas trans e advogadas são grandes e, por isso, precisa cuidar de sua imagem constantemente. “Se eu fizer uma bobagem ali na frente, não vão dizer ‘a Márcia Rocha fez bobagem’, vão comentar ‘tá vendo? Colocaram uma travesti ali e olha o que aconteceu’.” 

Confira abaixo a entrevista com a advogada, eleita a primeira Conselheira Seccional trans da OAB São Paulo e com assento no Comitê de Direitos Sexuais da World Association for Sexual Health (Associação Mundial de Saúde Sexual, em tradução livre). Ela também é pós-graduada em Educação Sexual. 

 

Que características ou habilidades você considera essenciais em uma mulher na liderança? Como você as desenvolve e as alimenta regularmente? 

Acho que tem que estar preparada, ter paciência e compreensão. Precisa, também, saber lidar com as pessoas. Além das competências técnicas, é muito importante dar exemplo e ter postura. Eu me preocupo sempre no meu dia a dia com a minha postura, porque sei que estão observando o tempo inteiro e esperando que a gente escorregue para apontar o dedo.  

É lógico que também depende muito do tipo e do grau de liderança que você está. Se você está em um cargo de uma multinacional, vai passar mais ou menos o que uma travesti passa hoje na OAB, no Conselho, como é o meu caso. Então temos que estar sempre preocupadas com a forma de falar, com a postura e com uma série de questões, além de estarmos preparadas para o cargo que ocupamos, porque as mulheres, de modo geral, têm uma dificuldade bem maior do que os homens para subirem e se manterem em um cargo de liderança. Então acho que o fundamental é se preparar e estar se aprimorando sempre, estudando, melhorando e preocupada constantemente com a imagem que está passando. Infelizmente, vivemos nesse mundo, e nele temos que construir. 

Você já teve algum tipo de sentimento de autossabotagem? Como lida com essa situação e que dicas dá para mulheres que se sentem assim nos projetos, áreas e lugares em que atuam? 

O que eu sinto é muito cansaço mesmo. Muitas vezes eu penso: “gente, não aguento mais, não quero mais, vou parar”. É muita pressão, muita cobrança, então eu não penso em autossabotagem no sentido de causar algum problema para mim mesma, mas na vontade de largar tudo e ir para uma casinha na praia. Isso é uma luta interna diária para continuar, seguir em frente, insistir e não desistir. Acho que essa é a principal questão que tenho de autoenfrentamento para que as coisas continuem a avançar e dar certo. 

Como é ser uma mulher trans bem-sucedida no Brasil?

Hoje, graças aos céus, há cada vez mais pessoas trans conquistando espaços na política e nas empresas. Mas ainda é muito difícil. A sensação de espanto das pessoas diante de nós ainda é muito grande. A gente percebe nos olhares. Às vezes falo que sou advogada e as pessoas me devolvem com a pergunta “você é advogada?”. Quando digo que sou empresária, acham que minha empresa é uma produtora pequena de vídeo, mas ao perceberem que minhas empresas são grandes, que faço loteamento, as pessoas ficam pasmas. 

Também há preconceito. Eu, como empresária, vou a alguns ambientes onde tentam me passar a perna. Às vezes te discriminam, acham que você não vai ser competente o suficiente, e aí eu surpreendo com muita resistência e competência para fazer as coisas. Exemplo: quando me relaciono com prefeituras ou com o judiciário como representante da minha empresa, as pessoas não acreditam que sou eu coordenando e realizando tudo aquilo. Mas aos poucos vamos mudando essa ideia. No primeiro momento as pessoas estranham, depois elas vão se acostumando, e em seguida passam até a admirar. Então acho que isso também faz parte de educar a sociedade para a diversidade. 

Você é idealizadora da plataforma TransEmpregos. Vi uma declaração sua de que nunca teve dificuldade para conseguir emprego, mesmo sendo trans. Pode falar um pouco sobre isso? 

Sou idealizadora do Transempregos, mas eu jamais procurei emprego, pois sou empresária. Meu primeiro emprego foi de terno e gravata, como homem, e eu tive todos os privilégios de homem branco, cis e hétero que eu não era, mas que as pessoas pensavam que era. Foi um emprego muito bom, que me ajudou a aprender muito, mas foi uma porta aberta por eu estar de terno e gravata. Se eu estivesse de saia, hoje, com toda a experiência e bagagem que eu tenho, eu jamais conseguiria o emprego que tive aos 24 anos de idade. Então o que a gente faz na Transempregos é justamente abrir portas e preparar os departamentos de recursos humanos para lidar com seus vieses inconscientes e não discriminar. Dar oportunidades verdadeiras para as pessoas trans, assim como negros, mulheres e pessoas com deficiências, que estão juntos com a gente nessa luta de mudar a maneira como as pessoas nos veem e criar oportunidades verdadeiras dentro das empresas. 

Para você, quais são os principais desafios na carreira de pessoas trans? Que dicas você dá para superá-las, ou ao menos amenizá-las? 

A maior dificuldade que as pessoas trans têm no meio corporativo é o preconceito. A ideia de que muitos te olham e acham, inconscientemente, que você não é capaz. Esse é o principal obstáculo, que também acontece com pessoas negras, mulheres e pessoas com deficiência. Então, a melhor maneira de lidar com isso é ter paciência e educar. Eu não vejo uma reação agressiva ou de inconformidade muito grande como algo que vai fazer diferença, só vai reforçar esse preconceito que as pessoas já têm. Então, sempre falo para as pessoas trans terem paciência e calma, pois é assim mesmo, e que tentem educar, não brigar e mostrar competência. Se esforçar de verdade. As mulheres também passam por isso de modo geral, pois ainda têm uma dificuldade muito grande de serem vistas como pessoas competentes nas empresas, então elas precisam se esforçar em dobro. Infelizmente, é uma realidade, e para as pessoas trans talvez seja o triplo da dificuldade para conseguirem alcançar, galgar e convencer de que são realmente capazes.  

É mais difícil ser uma liderança trans mulher ou homem? Por quê? 

Depende muito do estágio em que a pessoa está na transição, da ‘passabilidade’ e se ela mudou os documentos ou não. Quando falamos de travestis, por exemplo, muitas vezes elas não querem mudar o nome e o sexo no documento, e têm uma aparência feminina geralmente não convincente enquanto mulheres cis. Quando a pessoa é “passável”, como falamos, ou seja, quando convence no gênero com que se identifica, fica muito mais fácil. Nesse caso, os homens trans têm vantagem, porque ficam com essa ‘passabilidade’ muito forte. Ninguém percebe que eles são trans, são lidos pelas pessoas como homens e passam a ter as portas abertas que eles, em geral, têm. E, claro, mais abertas do que para as mulheres.  

No caso de uma mulher trans passável, se mudou o sexo e o nome no documento, ela vai enfrentar as mesmas dificuldades que uma mulher cis. Quanto a uma travesti que não é passável ou um homem trans não tão convincente, eles vão ter mais dificuldades do que as mulheres cis. Além disso, existem também questões de raça, etnia, deficiência e outras interseccionalidades que dificultam ainda mais essa situação. 

Você é a primeira advogada trans brasileira com nome social reconhecido pela OAB e uma das lideranças responsáveis por essa virada no país. Como é isso para você? 

Como disse lá no começo, sabemos a responsabilidade que temos pelas nossas conquistas e por estarmos sempre em evidência. Tenho que estar preocupada o tempo todo com a minha imagem, com seriedade. Levamos dez anos para construir uma imagem que em 15 minutos pode ser destruída. Basta fazer uma bobagem que acabamos com a nossa reputação. Então, essa é uma preocupação constante minha, pois fui a primeira pessoa trans a conseguir o direito ao uso do nome social, que foi extensivo a todas as pessoas trans da OAB, advogados e advogadas, e isso é algo muito importante. Hoje, também sou a primeira Conselheira Seccional da OAB. Então tudo isso faz com que eu tenha uma responsabilidade muito grande perante toda uma categoria. Se eu fizer uma bobagem ali na frente, não vão dizer “a Marcia Rocha fez bobagem”, vão comentar “tá vendo? Colocaram uma travesti ali e olha o que aconteceu”. Isso é real e precisamos ter essa noção dentro de nós o tempo inteiro, essa preocupação com a imagem e com a reputação. Sempre fiz tudo corretamente na minha vida, mas isso se tornou uma questão muito mais importante a partir do momento em que eu assumi a imagem de representação de toda uma categoria. 

Quais mulheres inspiradoras você segue, lê e observa? Como elas te inspiram? 

Gosto muito da Luiza Trajano, do jeito que ela age e pensa. A mulher que mais me inspirou e inspira é a Mara Gabrili. Conheci ela na adolescência, quando ela ainda andava. Pouco tempo depois, encontrei com ela quando já tinha sofrido o acidente e disse que senti muito. Ela me respondeu: “não precisa se sentir assim, agora eu vou lutar pelas pessoas com deficiência. Isso se tornou uma meta de vida para mim”. Ela disse aquilo com muita alegria e muita força, e foi muito marcante para mim, fico até emocionada de lembrar, porque ela é uma potência. Uma mulher que mudou o mundo e está ajudando todas as pessoas com deficiência. Se hoje temos rampas e braile em elevador, essa mulher lutou por isso. Ela fez e faz diferença no mundo, com todas as dificuldades que enfrenta no dia a dia.  

Por fim, tem alguma dica de séries, filmes, livros e/ou músicas que consumiu recentemente e te fizeram refletir sobre a condição e o papel das mulheres, em especial das trans? 

Para falar a verdade, recentemente não tenho tido muito tempo para ler livros e ver filmes, mas a minha assistente falou da série Pose e acho que vale citar, pois tenho vontade de ver. É uma produção que reflete muito nossa realidade e aborda muitas questões importantes. Acho que fica como indicação, da Priscilla Pekin. 

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