Pyr Marcondes
21 de maio de 2018 - 0h00
Precisava ser meu amigo e, apesar disso, brilhante, Mauro Cavalletti, para tocar seu dedo de diamante na coisa certa, do jeito certo, mas como sempre, com seu olhar diverso, para transformar, como um alquimista, o óbvio em conhecimento de ouro.
“Somos todos inventores cotidianos” talvez sintetizasse o coração do pensamento do Mauro em artigo que escreveu para o Meio & Mensagem semana passada. Só que não.
Não dá para sintetizar o pensamento do Mauro numa única frase.
Por isso, resolvi escrever váááárias linhas sobre ele, porque para mim a pensata “A revolução criativa do dia a dia” contém os elementos essenciais para a recorrente e seminal reflexão sobre criatividade e tecnologia, que todos em nossa indústria deveríamos ter. E que, em verdade, precisamos ter, em nosso próprio benefício.
Você vai entender por que.
Cegueira como estado de espírito
Há um atávico e cego entendimento em nossa indústria de que tecnologia e criatividade são instâncias conflitantes e quase excludentes do gênero humano. Principalmente entre os profissionais de criação, que ficam repetindo o mantra vazio de que o que importa é a Big Idea, e não se tocam que um algoritmo é uma puta ideia sensacional e que Big Idea reduz o escopo maravilhoso e ampliado da criação sem fronteiras, potencialmente inimagináveis, a uma ideia no centro e várias peças de comunicação em volta.
Algoritmo é arte
No meu entender, uma visão medíocre do que vem a ser e pode vir a ser criatividade no mundo de hoje.
O Mauro, um premiado e celebrado profissional egresso exatamente da criação de agências, com reconhecimento e carreira internacional, padrão world class, sabe muito bem disso.
E manda: “Jogar-se em problemas e oportunidades inéditos parece ter-se tornado a norma na vida das pessoas e no ambiente de negócios. Os saltos inesperados são cada vez mais frequentes e os ciclos de estabilidade cada vez mais curtos. Em meio a tanta novidade, a criatividade fica mais e mais relevante: enxergar padrões no meio do caos aparente é certamente importante, mas juntar as pontas, criar sentido, inventar soluções e propor novas realidades é muito mais. Também é muito mais divertido.”
Enxergar padrões no caos aparente é o que nosso mercado entende por criatividade e os criativos entendem por criação, seu job.
Inventar soluções e propor novas realidades é o universo ampliado do novo possível, em que é absolutamente permitido não apenas criar estratégias e planejamento de marketing ou ter as frívolas Big Ideas de campanhas, mas disromper negócios, inventar do nada uma nova lógica comercial, imaginar novas plataformas de distribuição e vendas, cunhar novas moedas (literalmente), constituir marcas que se expandam em abrangentes ambientes de relacionamento social e moral verdadeiros e vitais, transformar dados em insights revolucionários de comportamento e consumo, inventar produtos, re-inventar canais logísticos e de comunicação, constituir novas empresas em cima de empresas já existentes ou em cima de empresa nenhuma, responder ao novo consumidor com linguagens e dinâmicas tecnologicamente integradas a um diálogo permanente e transparente. Poderia me estender quase que indefinidamente aqui, mas o ponto é que nem o céu é mais o limite, porque existem os drones :-).
Mauro coloca assim essa visão sem fronteiras: “De Gaudi explorando novas técnicas construtivas e equações matemáticas, a Monet construindo ambientes de jardins-modelos em seu próprio estúdio, a história está cheia de exemplos de gênios que transformaram processos de aprendizado e investigação em resultados impactantes e disruptivos”.
As estruturas geométricas e, a um só tempo, caóticas, de Gaudi, incorporam lógica e imaginação em um mesmo universo. Por que não podemos fazer o mesmo?
Porque entendemos que nossa indústria vive uma crise criativa?
Mauro tem sua resposta: “Uma possível explicação é que continuamos a aplicar processos e soluções antigos para resolver problemas e explorar oportunidades completamente novas”.
Eu, mui humildemente, acrescentaria que há uma enorme preguiça intelectual na nossa indústria em relação a engenhar novas soluções, investigar novas fronteiras, sair da porra do armário das fórmulas já conhecidas e repetidas à exaustão. Big Idea é só uma dessas fórmulas.
Quer ver um jeito efetivamente grande de pensar grande?
Vai lá, mestre Mauro: “Da hora em que mandamos uma simples mensagem ao momento em que definimos o próximo passo de um negócio, somos todos inventores cotidianos. Imensa vantagem para criativos profissionais de toda espécie, que desfrutam de um ambiente de aceleração de ideias. Quando todo mundo, do manobrista ao presidente da empresa tem que ser criativo, chegamos ao nirvana”.
O tempo, o ágil, o simples e o complexo
Agora vamos fazer a ponte direta com a tecnologia.
Primeiro … você sabe o que é tecnologia?
Vai no Google, tá lá. Tecnologia vem do grego, ciência do ofício. Ou ainda, a arte de aplicar a ciência. Essa tal ciência do óficio.
Nosso ofício é fazer negócios. Nossa ciência é a mercadologia. E nossa arte?
Nossa indústria domina uma arte única, a da imaginação. Os artistas também são bons nisso, como citou o Mauro. Mas não há nenhuma razão para não mergulharmos na tecnologia feita ofício das ideias sem fronteira. Só que aplicadas ao mercado e às soluções de negócios. Sejam elas quais forem.
Sacou ou não? Releia a frase acima, por favor, para eu estar certo de que estamos na mesma página
Mas vamos além.
Tecnologia é também um conjunto de ordenamentos, processos e fundamentos técnicos, cuja complexidade não é, de fato, para qualquer um.
Por isso temos medo dela. Por entendê-la um ofício de matematas e engenheirandos nerds.
Pois nem mesmo essa tecnologia complexa está distante do nosso domínio, do domínio de todos e de cada um de nós. Veja, como eu disse, sem perdermos de vista que estamos falando aqui de um mecanismo e de plataformas a serviço da nossa indústria, dos nossos objetivos empresariais e, se quisermos, do marketing, do consumo e da comunicação.
Afinal é o que fazemos para viver e ganhar o pão, certo?
Então, vamos a esses tais processos complexos.
E comecemos por desmistificá-los, de uma vez por todas.
Vai Mauro: “A diferença entre aproveitar uma oportunidade incrível e ter que resolver um problema sem precedentes está, muitas vezes, na mentalidade e no tempo com que se reconhece a situação”.
Temos aqui, colocadas pelo Mauro, duas variáveis. Mentalidade e tempo.
A forma como abordamos os desafios mercadológicos cotidianos, aliada ao domínio do tempo na consecução de objetivos e práticas, são as chaves desse aparente choque entre tecnologia e criatividade, a nossa criatividade, a do nosso setor.
Vem do próprio ambiente tecnológico a solução para esse inexistente impasse e para o desvendamento dos seus inexistentes mistérios.
Tecnologia nada mais é do que conhecimento aliado a técnicas de sua aplicação. E conhecimento todos nós temos, do que fazer e de como fazer as coisas que precisam ser feitas em nossa indústria.
Mauro, explica pro pessoal aí: “Nesta nova aceleração, processos criativos que exploram agilidade e promovem colaboração, duas importantes premissas de nosso momento, tornam-se peças muito valiosas. Desenhados para acomodar diversidade cognitiva e gerar ideias inovadoras em ciclos de curto prazo, estes processos podem ajudar nos grandes movimentos de gestão empresarial, ou pelo menos a preparar os decisores para que operem com uma mentalidade flexível e ágil.
Nem chegam a ser grandes novidades, só estão mais populares pela escala dos problemas e oportunidades que estamos encarando. A maior parte da bem-sucedida industria contemporânea de software usa processos ágeis e evolutivos derivados do movimento iniciado em 2001 com a publicação do Manifesto Para o Desenvolvimento Ágil de Software. Criado por um grupo de influentes programadores que acreditavam em processos adaptativos para a geração de tecnologia, o manifesto é incrivelmente criativo e gerou uma variedade de técnicas de programação que estão entre os pilares da cultura empresarial do Vale do Silício.
Num episódio de 1999 do programa Nightline da rede norte-americana ABC, o escritório de design IDEO demonstrou seu processo de uma semana de trabalho na geração do protótipo para um inovador carrinho de supermercado. O vídeo é um clássico que até hoje recruta discípulos ao redor do mundo. O pensamento que sustenta seu processo de Human-Centered Design não é muito diferente do proposto pelos programadores do Agile – iterações flexíveis, evolutivas, desenvolvidas em curtíssimo prazo, focando em desenvolvimento contínuo.
Ambos os métodos foram desenhados para que se tornassem processos circulares de aprendizado e desenvolvimento coletivo, abertos para a participação do público final. Isto soa muito bem para nosso momento criativo, não é verdade? Longe da pretensão de gerar conceitos arrebatadores sem compromissos concretos, são práticas de criatividade mão-na-massa que vêm, de fato, criando ideias demolidoras por duas décadas.
O mais importante, por irem muito além da teoria não pedem que se façam movimentos gigantescos de saída. Andam de passo em passo. Uma voltinha depois da outra. Vale experimentar”.
Tudo isso aí foi o professor Mauro falando. Ele, aliás, aplica tudo o que acabou de dizer em dinâmicas colaborativas práticas, em que desmonta a criatividade (hacking) e a realinha em processos cognitivos ágeis, em grupos, cujo resultado são protótipos não de campanhas para Cannes, mas soluções inovadoras de negócios.
Os processos lean e agile, growth hacking e design thinking, que desvendam e reordenam a complexidade cognitiva e os problemas das sociedades contemporâneas, são egressos do mundo da tecnologia e das startups, mas em verdade são técnicas que podem ser de domínio de quem quiser, do setor que for, a serviço da busca de conhecimentos novos ou do realinhamento de conhecimentos existentes, mas numa nova ordem, um novo olhar, um novo tipo de uso. Efetivamente criativo.
Quer coisa mais do nosso ambiente do que imaginar soluções para problemas? E porque não incorporar essas técnicas e processos, esses fundamentos da tecnologia às dinâmicas originais do marketing e da comunicação?
Isso é a mais pura tecnologia utilizada de forma prática e eficiente a serviço da criatividade. A nossa tão cara criatividade.
Não há, assim, qualquer incongruência entre tecnologia e criatividade. E vou me arriscar a projetar o futuro aqui, afirmando que todos esses processos vão invadir a nossa praia como um tsunami, muito por conta da chegada ao nosso negócio das empresas de tecnologia e das consultorias, que dominam essas técnicas como ninguém.
E um parágrafo só sobre as startups. Elas, além de dominarem muito bem tudo isso, estão disrompendo todos os setores da economia, porque não haveriam de disruptar o nosso?
Mas a melhor pergunta sobre isso é: porque não disruptamos nós mesmos?
Queira você ou não, vai ser assim.
Portanto, como nos convoca o Mauro, que tal experimentar? Que tal tentar?
Basta deixar de ter grandes ideias e passar a pensar grande de fato.
Big Idea é rádio a válvula. Xerox. Fax.
Big Ideas equals small thinking.
(*) Leia o artigo do Mauro na íntegra aqui. Coloquei o link no final do meu texto de propósito, porque se colocasse lá em cima, você ia ler o Mauro e me abandonava de vez :-).