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29 de janeiro de 2018 - 9h18
Por Ricardo Cavallini (*)
Alguns conceitos demoram décadas para amadurecer e ganhar importância devida no universo corporativo.
Usabilidade é um bom exemplo. Vocês devem se lembrar do lançamento do iPhone. Na época, a maioria dos especialistas apostaram contra. Comparado com o Nokia 95, o aparelho tomava uma surra em todas as suas funcionalidades. Câmera com muito menos megapixels, um Bluetooth que não servia para nada, não era 3G, não tinha GPS etc. No ponto de vista de funcionalidades, ele era tão fraco que os memes comparavam o aparelho com uma pedra e ele quase perdia. Mas a usabilidade provou seu ponto e o resultado todos conhecemos.
Usabilidade é um conceito de muitas décadas, talvez séculos. Mas o termo em si ganhou vida na década de 80 e apenas nos últimos 10 ou 20 anos ser tornou amplamente popular. Porém, foi preciso mudar uma indústria inteira de ponta cabeça para mostrar isso.
O iPhone foi um marco pois mostrou que a discussão estava errada. Funcionalidades são importantes, mas não adiantava lançar celulares cada vez mais avançados se eles ficavam cada vez mais difíceis de usar.
Toda essa introdução para fazer um paralelo com o mercado de comunicação.
O foco das discussões continua sendo em relação ao modelo de negócio e acredito que estamos cometendo um grande erro. Assim como a usabilidade, outro conceito que demorou décadas para ganhar importância e popularidade deveria ser o nosso foco: a cultura corporativa.
Discutir o modelo de negócio é a discussão velha.
O que está destruindo as agências — e diria todo o mercado de comunicação, incluindo a área de marketing nos anunciantes — é o fato da maioria das pessoas estarem infelizes, insatisfeitas, broxadas e sem esperança.
É a cultura do 24×7, da falta de respeito generalizada, da parceria predatória com fornecedores, dos funcionários tratados como lixo, dos atrasos em pagamento quase tão frequentes como os atrasos em reuniões. A cultura do assédio que ultrapassou todos os limites imagináveis. Demissões em massa tratadas como a mesma naturalidade e falta de cuidado que trocamos de roupa e por aí vai. Você pode completar com mais alguns exemplos.
Discutir o BV (sendo contra ou a favor) é o mesmo que dizer que a câmera das agências brasileiras têm mais ou menos megapixels que as das agências gringas.
O verdadeiro problema não está no modelo de negócios, mas no modelo mental.
Antes de ser mal compreendido, cabe um parêntese importante. Está é uma crítica ao mercado, não as pessoas que estão publicamente falando em sua defesa. Muitos dos quais representam o mercado, mas não os seus defeitos. Assim como sabemos que o problema do assédio é grave e isso não significa que somos todos assediadores, o mesmo vale para a crítica que faço neste texto. Não se trata de apontar o dedo para um ou para outro, mas de alertar que é preciso buscar maneiras de reverter esse cenário. O papel é de todos, principalmente de quem não colaborou para chegar nesse ponto.
Ter um ambiente saudável, colaborativo, transparente, que trate todos com respeito, que se preocupe realmente com a felicidade das pessoas e com as suas vidas não é incompatível com a busca contínua por resultados e lucratividade. As startups (com raras exceções) estão aí pra provar isso. Em muitas delas, o crescimento de bilhões no faturamento caminha religiosamente em paralelo com o alcance das melhores posições no ranking de melhores empresas para se trabalhar.
A verdadeira disrupção das startups é contestar o modelo antigo. E o que melhor descreve isso é a política de “no asshole allowed”.
A boa notícia é que mudar isso depende unicamente de nós. A má notícia é que mudar cultura é muito mais difícil que mudar modelo de negócio. E se não entendermos isso rápido, a preocupação não deveria ser de morrer, mas de descobrir que ninguém iria nesse enterro.
(*) Ricardo Cavallini é fundador da Makers, empresa que realiza treinamento para startups e projetos de inovação aberta para grandes empresas.