Inteligência artificial e publicidade: quais os limites da mensagem criativa?
Polêmica a respeito do comercial da Volkswagen com Elis Regina abre discussão sobre novas possibilidades tecnológicas, como o uso de pessoas falecidas em peças comerciais
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Bárbara Sacchitiello
6 de julho de 2023 - 18h23
A inteligência artificial pode ter o poder de “ressuscitar” pessoas na publicidade? Se Elis Regina estivesse viva, ela aceitaria participar de um comercial de automóveis? A letra da canção “Como Nossos Pais” é adequada para expressar uma homenagem entre mãe e filha, em um contexto comercial?
Essas foram algumas das muitas questões que ganharam as redes sociais – e ainda vêm rendendo muitos debates e troca de opiniões – desde que a Volkswagen colocou no ar, na noite de segunda-feira, 3, o comercial “Gerações” Por meio de tecnologia deepfake, a marca colocou a cantora Elis Regina dirigindo uma Kombi e cantando junto de sua filha, a também cantora Maria Rita.
Com o lançamento da campanha, foram muitos os relatos de pessoas que se emocionaram ao rever a cantora e de poder ver um dueto entre Elis e sua filha. Bem como foram numerosas as manifestações de quem não considerou de bom tom reconstruir a imagem de uma pessoa já falecida em uma ação comercial.
De qualquer forma, o uso de uma nova tecnologia, capaz de criar universos e realidades que, até então, eram impensáveis, sempre traz consigo novos dilemas éticos. E é exatamente esse processo que estamos vivenciando, na opinião de Luiz Cavalheiros, publicitário e professor do curso de comunicação e publicidade da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-Rio).
“Esse trabalho suscitou um debate ético a respeito da relação da Volkswagen com a ditadura, associada à imagem da maior cantora do Brasil, que tem um histórico de luta contra a ditadura. O uso de inteligência artificial não tem mais volta e vai levantar essas questões éticas, que serão debatidas e poderão ser aceitas ou não pela sociedade civil”, analisa o professor.
Para criar a imagem de Elis Regina, a agência AlmapBBO fez uso de uma tecnologia que mapeou milhares de fotos e vídeos da cantora. A partir desse banco de dados das feições, as características do rosto de Elis foram sobrepostos ao rosto de uma atriz, que participou do comercial, dirigindo a Kombi, como contou à reportagem o chief creative officer (CCO) da agência, Marco Giannelli, conhecido como Pernil.
Não há, em âmbito legal, alguma regra que proíba a utilização de imagem de pessoas já falecidas em ações do tipo. É preciso, contudo, que o anunciante se atende às normas do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (Conar), que estabelece regras que estejam em sinergia com as leis vigentes do País.
“Ao se utilizar de tecnologias como a vista na peça publicitária de Volkswagen, o anunciante deve se atentar aos direitos de terceiros atrelados, por exemplo, à personalidade de uma pessoa, que é protegida por nosso ordenamento jurídico. Esses direitos de personalidade incluem não somente a imagem propriamente dita de um indivíduo, mas também seu nome, voz, e mesmo outras características marcantes e reconhecidas de sua personalidade”, explica Fernanda Magalhães, advogada especialista em propriedade intelectual, do escritório Kasznar Leonardos, e também membro do Conar.
Segundo a advogada, para a realização de uma publicidade, como essa da Volkswagen, uma marca pode fazer uso da imagem de uma pessoa já falecida, desde que, antes, obtenha a autorização de seus familiares para uso específico. Segundo Fernanda, quem tem legitimidade para conceder tal autorização são, eventualmente, o cônjuge ou outro parente em linha reta (pais, avós, bisavós, netos e bisnetos), ou, também, em linha colateral (irmãos, tios, sobrinhos e primos).
No caso dessa campanha, de acordo com o CCO da AlmapBBDO, assim que a Volkswagem aprovou a ideia proposta pela agência, a equipe entrou em contato com Maria Rita, filha de Elis, para explicar a ela sobre o comercial e aprovar a ideia. Da mesma forma, também foram concedidos o uso da canção “Como Nossos Pais”, composta por Belchior.
A quantidade de textos opinativos sobre a campanha da Volkswagen, postados na mídia e em redes sociais como LinkedIn, Twitter e Instagram, sinalizam que o uso desse tipo de tecnologia, seja na publicidade ou em produtos de entretenimento, pode dar margem à muitos debates.
O professor da ESPM Rio acredita que outros trabalhos como esse, que resgatem a imagem de pessoas já falecidas ou que mostrem personalidades em contextos diferentes podem se tornar comuns.
“Quanto mais sedutor e mais surpreendente for o entretenimento, mais conversas e resultados ele tende a gerar. Acredito que, sim, veremos outras homenagens a pessoas que se foram, bem como o rejuvenescimento de outras personalidades ou mudanças geradas pela inteligência artificial”, acredita Cavalheiros.
Essas discussões, na visão do publicitário, são saudáveis e não podem barrar o avanço da tecnologia. “As pessoas que estão reclamando do comercial têm que ter voz, claro, mas não podemos evitar que pessoas mortas sejam usadas em homenagens. Isso seria censura. Logicamente, se houver um ataque à personalidade, à história dessa pessoa, aí cabe dar voz a esses casos para que se construa um debate em relação ao uso de uma nova técnica”, argumenta.
Para o CCO da AlmapBBDO, as críticas em relação ao comercial da Volkswagen foram poucas diante de tantos relatos emocionados de pessoas que se emocionaram ao ver a imagem da cantora e a nova interpretação da canção. “Sempre existirão críticas, em qualquer situação. Todo mundo busca algum defeito para criticar”, disse Pernil, à reportagem.
Na visão da advogada Fernanda Magalhães, a Constituição Federal Brasileira, bem como o Código Civil, já contemplam diretrizes para uso de nome, imagem, voz e traços de personalidade das pessoas em projetos comerciais. Não há, portanto, a necessidade de criar uma nova regulamentação para os trabalhos publicitários que façam uso de deepfake e inteligência artificial.
“Utilizar-se dos traços reconhecíveis da personalidade de um indivíduo em um contexto publicitário, seja através da aplicação da tecnologia de inteligência artificial, da criação de avatares em plataformas de metaverso ou de qualquer outra forma criativa, exigirá de anunciantes um cuidado quanto aos direitos de personalidade daquele indivíduo, que poderá exigir indenização por uso de sua imagem se tal uso não tiver sido previamente autorizado”, explica.
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