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Ponto de vista

Antes, podia

Não dá mais para a publicidade produzir tendo a si mesma como referência, sem pensar na pegada negativa que deixa na história da marca e nos resíduos que espalha pela sociedade


3 de novembro de 2015 - 10h01

Na verdade, nunca pôde. Mas houve mesmo um tempo em que parecia poder. Um tempo onde não ter nenhum negro em campanhas publicitárias no Brasil era justificado pela projeção do nosso alter ego — o que por si só já era algo difícil de aceitar — e não pelo reflexo de um mercado publicitário que produzia tendo a si mesmo como referência.

Um tempo em que uma mulher seminua vendendo uma marca de pneus em uma borracharia compunha a decoração e parecia não despertar nenhum tipo de desconforto — e olha que elas continuaram sendo parte da paisagem mesmo depois que as mulheres passaram a responder por uma parte significativa das visitas às oficinas.

Um tempo em que um anúncio onde um pintor negro passando tinta sem cheiro debaixo do braço para falar de um novo produto parecia normal. Isso não só acontecia como aconteceu em uma conta com a qual eu trabalhava. Não foi veiculado, mas não foi simples.

No mês passado, no meio da discussão sobre o calendário da Leo Burnett Tailor Made (LBTM) acusado de transfobia (se você não acompanhou, leia aqui), troquei ideias com algumas pessoas e uma delas me perguntou: “você acha que diretores de arte leem jornal e sabem que travestis são perseguidos ou assassinados?” Não leem? Não sabem? Também ouvi: “o mundo está ficando chato; antes, era possível ser criativo sem ser perseguido”.

Desculpem-me, mas tive vontade de vomitar quando ouvi afirmações como “pergunte ao travesti que fez a foto se ele se importou”. Lembrou-me a dezena de vezes em que ouvi que a mulher que fez o papel de objeto sexual no comercial de cerveja gozou. A ignorância ou a necessidade financeira não justificam o uso da imagem para vender ideias que são contra você mesmo, mas é algo que de alguma forma se explica. O que não se explica é que alguém deliberadamente planeje, crie e aprove uma ideia que pode até, por um tempo, ajudar a vender um produto, mas que deixa uma pegada extremamente negativa na história da marca e na sociedade.

Conheço o time da LBTM e tenho certeza de que nenhuma daquelas pessoas, deliberadamente, construiu uma ideia pensando em deixar uma pegada negativa. Deliberadamente. Aquilo que foi decidido, feito de propósito ou com determinada intenção. Este é o ponto aqui. Nem o time que criou o calendário nem nenhum de nós está construindo mensagens deliberadamente negativas porque nem sequer estamos pensando nisso.

A qualidade das nossas pegadas no mundo é a grande discussão deste século. Praticamente todas as indústrias estão discutindo coisas como procedência, destino, produção de resíduos e consequências socioculturais. Praticamente todas as indústrias, menos a nossa. Por que não estamos fazendo isso? Por que temos saudade de uma época em que insistíamos em ignorar o poder que a publicidade tem de influenciar a opinião pública e de legitimar ou definir padrões e comportamentos?

Todos os grandes temas em destaque hoje nos principais noticiários do mundo passam, de alguma forma, pelo reconhecimento do outro, pelo valor da diferença, do que é único em cada indivíduo e em cada grupo social, pelo inexplicável crescimento da intolerância e do abuso em um mundo onde o desenvolvimento tecnológico aponta para a abundância. Todos os grandes temas em destaque no mundo passam hoje pela discussão do papel da comunicação. Onde mesmo você quer estar enquanto isso acontece?

Ainda estamos olhando para o que fazemos acreditando que não deixamos resíduos na sociedade. Será que precisamos de leis que nos digam que não podemos sexualizar crianças? Estimular a violência contra mulheres? Estimular ou legitimar qualquer tipo de fobia? Ainda usamos o acaso, a ignorância, a não intencionalidade para justificar nossa falta de contato com a realidade e nossa falta de consciência. Não dá mais. Chega. Definitivamente, isso não pode.

(*) Ana Cortat é chief strategy officer da Pereira & O’Dell e escreveu para a edição 1684 do Meio & Mensagem, veiculado no dia 2 de novembro de 2015.

 

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