Pyr Marcondes
4 de julho de 2019 - 6h58
Em 2006, Nike e Apple se uniram para lançar uma revolução: o projeto Nike+ (Nike Plus).
Ninguém na imprensa se lembra disso e nem no mercado, mas Nike+ foi o projeto que inventou a Internet das Coisas, bem antes de se falar em Internet das Coisas. Isso porque ligava, pela primeira vez, um tênis (uma coisa) a um aparelho móvel (um iPod primeiro, depois os celulares Apple, depois as fuel bands e Apple Watches … e por aí foi), que poderia se conectar a internet, em busca da criação de uma comunidade digital global engajada na prática de exercícios e fitness (trouxemos o cara da Nike que criou o Nike+, o então VP de Esportes Digitais da companhia, Stephan Olander, para o ProXXIma, em 2010. Depois disso, tive oportunidade de ser convidado pela Nike para cobrir o lançamento da nova fase do Projeto, que se chamou Nike+ Experience, em Nova Iorque, em 2012, e fiz lá este vídeo xubrega, que você pode ver aqui, com o Olander explicando a bagaça toda).
O evento de launch do Nike Plus Experience, em galpões abandonados do porto de NY, em 2012.
Nike Plus original, com iPod, de 2006.
Stephan Olander, o gênio por trás do Nike+, no ProXXIma, em 2010
Nike Plus Experience, já com o iPhone e integrado com comunidades online
A agência que ajudou a Nike a criar o projeto foi a R/GA. O (assim chamado) Chief Creative Officer da R/GA era já Nick Law, que acaba de deixar o Publicis para se tornar o cara que vai manejar o marketing de inovação da Apple, sua velha conhecida.
Vou lembrar a todos aqui o que o Nick Law falou sobre o projeto, quando sua agência ganhou o Leão de Criatividade em Cannes, em 2007: “We had worked with Nike for several years on designing and developing online training for runners, including the NikeRunning.com training log, and a data platform for early distance monitors and MP3 players. Then in late 2005, R/GA received an RFP from Nike naming Apple as the hardware partner for the project. What they wanted R/GA to develop was an overall design system, including seamless data transfer and web application that took a runner’s run data from iPod to iTunes to the Web. We designed an experience that combined the simple intuitiveness of Apple with the dynamism of Nike.”
Law não é, nem nunca foi, como todos dizem, um diretor de criação. Ele é um visionário da inovação, que teve, durante duas décadas sob o comando de Bob Greenberg, o ninho mais promissor que alguém poderia ter tido no mundo para entender (e praticar) que publicidade é uma coisa legal, mas que pode ficar bem pequenininha, se comparada, como todos estão percebendo hoje, décadas depois (e o mesmo Festival de Cannes que premiou Law mais de 15 anos atrás finalmente reconheceu este ano), com a criatividade das ideias efetivamente transformadoras do mundo, envolvendo inovação, tecnologia, produtos e negócios.
Nike Plus não é um projeto de propaganda. Não é sequer um projeto de marketing. É uma revolução nas indústrias da moda e vestuário, do fitness e wellness, e dos eletro-eletrônicos, além de uma mudança de paradigma no comportamento humano.
Durante anos a agora empresa de Law, a Apple, fez revoluções dessa ordem de grandeza sob Steve Jobs, que revolucionou a indústria telecom, da mobilidade digital e da música, não só com concepções de negócios que reconstruíram todas essas indústrias, como criaram também alguns dos mais elaboradas, belas e igualmente revolucionárias obras-primas do design industrial, sob a batuta de Jony Ive, o designer gênio que acaba de deixar a Apple.
Um dos momentos mais iluminados de Ive e do design de computadores de todos os tempos, o iMac G3.
Ive é, certamente, um dos mais emblemáticos e importantes designers dos últimos 30 anos. Trabalhou com Law e a R/GA no projeto Nike Plus. Todos sob a batuta de Steve Jobs, que por sua vez, tinha um braço direito chamado Tim Cook que, enquanto ele viajava na mandioca em sua genialidade nz geração de novos produtos e revoluções de indústrias, tocava a empresa. Volto a isso ali adiante.
A imprensa vê na saída de Ive um descaso de Tim Cook com essa bobagem chamada design, o que ele veio semana passada a público negar veementemente, aproveitando para afirmar que sempre se deu muito bem com Ive e tals.
Cook e Ive
Na verdade, nem o Wall Street Journal, que saiu com reportagem afirmando categoricamente que Ive foi deixado de escanteio por Cook, nem ninguém, tem, de fato, como saber se Cook acha ou não design algo de menor relevância. Tendo trabalhado com Jobs, numa empresa chamada apple, décadas, seria difícil imaginar que pudesse ser assim.
Analistas ligeiros e parte importante da imprensa geral e, mais particularmente, da imprensa tech dos EUA, já dá como certo que o novo lançamento da Apple, uma nova evolução do iPhone, é um lixo de design. Alguns blogs especializados já estão dando conta também de que Ive era um cara chatão e que não era solidário com o trabalho em equipe. Ou seja, meio autoritário como seu ex-chefe, Jobs.
Haverá um esforço enorme para se provar essas teses, porque é mais importante achar que essa perspectiva é mais interessante do que simplesmente entender que Ive cumpriu seu ciclo e se foi. Que Jobs era um semi-Deus da inovação contemporânea. E que Cook não é Jobs, mas é, sim, um dos grandes gestores da indústria moderna.
Que é tudo o que eu acho.
Mas eu sou bobinho. Esses analistas e pessoal da imprensa é bem mais esperto do que eu.
Olha só agora até onde vai minha bobice olímpica…
A persistente prática, nascida sei lá de que canto do baixo intelecto humano de um número considerável de pessoas, de comparar Steve Jobs com Tim Cook, de verdade, me espanta.
Qual a lógica disso? Não há qualquer hipótese de comprar um gênio único e avassalador como Jobs com ninguém, seja quem for. Nem com outros gênios, como Elon Musk, por exemplo.
Cook não é esse tipo de animal. Ele é um gestor. Um brilhante gestor, mas um gestor. Jamais, de fato, terá o conhecimento de design de Jobs. Nem de negócios. Nem de coisa alguma.
Cook entrou na Apple em 1998. Viveu, ao lado de Jobs, de quem gozava de total confiança, todas as grandes transformações da empresa. Foi responsável, em grande parte, pela sobrevivência da companhia e superação de seus problemas de mercado nos momentos mais difíceis da empresa. Foi COO da Apple de 2004 a 2011, quando então o próprio Jobs, meses antes de morrer, pessoalmente, o indicou como seu sucessor.
Que mente insana acredita que esse cara não tem talento, nem é competente no que faz?
Cook tem, entre outros, atualmente, e desde 2011, o mérito de conseguir manter a Apple como uma das mais valiosas companhias do mundo, e o de estar, corajosamente, abrindo o espectro de atuação da empresa, entrando de cabeça, por exemplo, no mundo do entretenimento e da mídia. Um movimento bold e inegavelmente inteligente para este momento da evolução dos negócios das corporações-plataforma tech globais, da qual a Apple é um dos mais fulgurantes exemplos.
O resto é especulação, inveja, desinformação, ignorância, estupidez e um amontoado de lixo pseudo-intelectual que não vale o chão que a Apple pisa.
Ive vai agora gozar de um merecido descanso. Jobs já está também, merecidamente, descansando em algum lugar, sabe-se lá onde. Law seguirá sendo o brilhante Law de sempre e contribuirá, como já fez antes no passado, com o futuro da Apple. Já Cook, como tem feito nas últimas duas décadas, vai continuar ajudando a manter a companhia no topo de tudo o que ela faz e no alto da pirâmide dentre as mais relevantes e maiores companhias do mundo (no momento em que escrevo, o Market Cap da Apple era de US$ 927 Bi, atrás apenas da Amazon, com US$ 937 Bi, ou seja, a segunda empresa mais valiosa do mundo, tendo sido a maior poucas semanas atrás e entre as maiores há muitos anos).
Se não der certo tudo isso ali na frente, so what? Alinha aí pra mim, rapidinho, quantas histórias tão maravilhosas você conhece de sucesso do capitalismo contemporâneo como essa que reúne Ive, Law, Cook, Jobs e a Apple?
Resumindo, conhecer a história ajuda a respeitar, na medida exata, o passado; ajuda a interpretar melhor os fatos, signos e ícones do presente; e ajuda ainda e prever melhor o futuro.
Preconceito é, e seguirá sendo, detestável em qualquer lugar do mundo. Em qualquer situação e profissão. E em qualquer tempo.