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Celso Athayde: “A favela é um local de potência”

CEO da Favela Holding explica poder das comunidades para muito além de seu potencial de consumo


5 de agosto de 2020 - 6h00

Quando vou desenvolver uma operação de venda de produtos em favelas, estou usando a inteligência de quem distribuiu discos dos Racionais (Crédito da imagem: Douglas Jacó)

Celso Athayde é a antítese do executivo padrão, forjado nas cadeiras universitárias. Para sobreviver nas ruas, onde morou durante seis anos, praticou conceitos como economia compartilhada e networking, antes de saber o que significam essas terminologias mercadológicas. Durante a trajetória, trabalhou para o tráfico, foi camelô, organizou bailes de charme, produziu artistas, vendeu discos e promoveu eventos de hip hop, antes de chegar ao estágio atual de empresário.

A chave como empreendedor virou quando ele descobrir que a vivência era seu maior ativo, e que poderia utilizá-lo não apenas para ganhar dinheiro, mas para criar um ecossistema capaz de gerar de riqueza, formação e qualificação para moradores das favelas brasileiras. Controlador da Favela Holding, ele se classifica não como um patrão, mas como um “canal” que leva dinheiro para esses locais mais precários. Acredita também que a maior parte das empresas pratica o que chama de “caô social”, com prática e discurso desconectados, e que a falta de diversidade causa uma miopia na relação das marcas com pessoas pretas e das periferias.

Entre seus negócios mais recentes estão a Black & Black, rede social para promover maior interação entre negras e negros, e a Digital Favela, plataforma que pretende conectar microinfluenciadores moradores de favelas e marcas interessadas em falar com o público desses locais, lançada junto com a agência Peppery.

“Não queria ser visto somente como aquele preto da periferia que protesta, mas também como aquele que produz, que é protagonista da própria história e que ganha dinheiro com isso”

Meio & Mensagem — Como você percebeu que poderia usar sua vivência para fazer negócios?
Celso Athayde — Morei na rua dos seis aos 12 anos, embaixo do viaduto do Madureira, um lugar com muito comércio. Depois de sair de lá para um abrigo, fui parar na favela do Sapo, onde morava o Rogério Lemgruber (um dos fundadores do Comando Vermelho). Para me virar, trabalhei em boca de fumo e rinhas de gente. Aos 16 anos, voltei para Madureira e, como camelô, me tornei “sócio” da Nike e da Adidas (risos). O lugar tinha muito roubo e muita pirataria. Para poder trabalhar ali, convenci a subprefeitura que eu era o cara mais bravo da rua, apesar de não ser, e que poderia transformar aquilo em um espaço de paz. Deu certo.

M&M — Como a expansão desse olhar sobre aquela região abriu seus horizontes para novos empreendimentos?
Celso — Ainda nesse lance de organizar a área, comecei a fazer festas para os camelôs da região. Ali começou o baile de Charme de Madureira. Nessa época, conheci o William Santiago, que era dono da Zimbabwe Records (gravadora independente de música urbana). Criamos um selo chamado Zâmbia e passei a trabalhar com diversos artistas, incluindo os Racionais. Depois de um tempo, percebi que não queria ficar apenas contando a história dos quatro elementos do hip hop. Foi quando montei a Cufa. O desejo era transformar aquela linguagem que a gente tinha em algo objetivo. A gente falava em revolução, mas não via ela acontecer, de fato. A gente não conseguia conversar para além do público do rap. E eu não queria ser visto somente como aquele preto da periferia que protesta, mas também como aquele que produz, que é protagonista da própria história e que ganha dinheiro com isso.

M&M — Isso significa que o hip hop não estava maduro nessa época como indústria e preparado para ser um agente transformador também na questão da monetização?
Celso —
Exatamente. O movimento negro e o hip hop tinham medo de dinheiro. Mas dinheiro não pode ser um problema. Ele tem que ser uma solução em um mundo capitalista. Mas criaram um aquário para a gente e nos disseram: “esse é o discurso, a organização e o jeito de vocês; permaneçam no mesmo lugar”. Então, comecei a trabalhar com gente que não queria apenas falar de revolução, mas também construir alternativas. Minha carreira de empresário nasceu na Cufa. Quando eu dizia, lá atrás, que a Cufa era uma organização social com fins lucrativos, isso assustava todo mundo. Agora surgiu essa expressão de empreendedorismo social.

“Eu junto tudo que aprendi para pensar os projetos: a experiência de camelô, de fazer baile e de distribuir discos dos Racionais”

M&M — Além da Cufa, que hoje tem atividades em várias regiões do Brasil, você tem outras empresas, como a Favela Holding e o Data Favela. Como desenvolve seus modelos de negócio?
Celso —
Minha habilidade sempre foi a de prestar muita atenção no que vejo. Tenho um déficit cultural, sou funcional. Não consigo ler filme legendado no cinema, porque a letra passa rápido, por exemplo. Mas como queria ser rico, tinha que arrumar um jeito de acelerar outros processos. Junto tudo que aprendi para pensar os projetos: a experiência de camelô, de fazer baile e de distribuir discos dos Racionais. Hoje, quando monto uma Favela Holding, que agora tem 24 empresas, estou usando lógicas e mecânicas que aprendi no movimento hip hop. Quando vou desenvolver uma operação de venda de produtos em favelas, estou usando a inteligência de quem distribuiu discos dos Racionais depois que as distribuidoras acabaram e entrou a pirataria. Eu tinha que saber onde vai vender, onde não vai ter inadimplência e quem tinha o perfil para pagar o preço que valia o produto.

(Crédito da imagem: Douglas Jacó)

M&M — Ainda sobre modelo de negócio, chama a atenção a capilaridade da Cufa, que está em 413 cidades. Essa expansão é fruto de uma gestão descentralizada que funciona em rede?
Celso — Pode ser, mas a primeira coisa que pensei foi: quero fazer negócio social e ganhar dinheiro. Não há possibilidade de ter um coletivo forte, se o indivíduo está fodido. Quando entra o Governo Lula e as organizações sociais ganham mais espaço, quem tinha poder de articulação conseguiu se consolidar. A Cufa deu um grande salto com o festival Hutuz de hip hop. Pluguei a Cufa nessa rede e comecei a fazer negócios nas favelas, inclusive em outros municípios e estados, e também a captar via leis de incentivo. Na época, nem sabia que o nome disso é network. A Cufa faz um monte de coisas, mas tem o hip hop no DNA. Não à toa, vários rappers estão na linha de frente pelo Brasil e o mundo. Quem cuida da Cufa nos Estados Unidos é o Eli Efi, no Ceará é o Preto Zezé e no Rio de Janeiro, a Nega Gizza e o MV Bill.

M&M — Quando você passou a usar essa rede para expandir os negócios?
Celso —
Quando percebi como o homem do asfalto nos via. Ele queria fazer qualquer negócio ou parceria com a periferia e nos procurava. Daí a gente servia de segurança, apresentava todo mundo e conectava as pontas. E daí ele fazia o que tinha que fazer, ficava com o dinheiro todo e muitas vezes a gente não ganhava nem um “muito obrigado”. Pô! Mas isso é consultoria. Eles sabiam disso, mas a gente não, porque não conseguíamos ver valor naquilo. Passei a entender que tinha que ser sócio. Ele tem a grana e eu tenho a conexão. A minha linguagem, o meu conhecimento e o quanto me fodi na favela esses anos todos são o meu ativo. A favela produz R$ 119 bilhões por ano. Eu a entendo como um local de potência e resiliência e não de carência. É preciso começar a entender o valor que tem nesse lugar.

A íntegra desta reportagem está publicada na edição semanal de Meio & Mensagem, que pode ser acessada gratuitamente pela plataforma Acervo, onde é possível consultar ainda todas as edições anteriores que circularam nos 42 anos de história da publicação. Também está aberto a todo o público, gratuitamente, o acesso à versão digital das edições semanais de Meio & Mensagem, no aplicativo para tablets, disponível nos aparelhos com sistema iOS e Android.

Crédito da imagem de topo: Nayani Teixeira/ Unsplash

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