Silvio de Abreu: “A novela acompanha a sociedade”
Diretor de Dramaturgia da Globo fala sobre a relação do público com o gênero, que faz parte da TV há quase 56 anos
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Bárbara Sacchitiello
2 de outubro de 2020 - 7h40
Em 1963, a trama 25499-Ocupado , da TV Excelsior, trouxe à tona algo que seria um dos principais marcos da TV brasileira: a telenovela diária, em que, para seguir a história, era necessário acompanhar cada capítulo. Mais de 55 anos depois, mesmo com toda a evolução de conteúdo e tecnologia, o gênero continua sendo um dos campeões de audiência e de faturamento publicitário na TV.
Na Globo, uma das principais produtoras de novelas do mundo, esse pilar, desde 2014, está sob o comando de Silvio de Abreu, que após décadas de trabalho como autor – das quais resultaram sucessos de público e crítica, como Rainha da Sucata e A Próxima Vítima – passou a supervisionar toda a produção de dramaturgia diária (novelas) e, posteriormente, semanal (séries).
No mês em que a TV brasileira celebra 70 anos, Silvio, em entrevista ao Meio & Mensagem, analisa o forte poder de conexão da novela com o público e elenca os ingredientes que, em sua opinião, ainda são capazes de manter as pessoas diante da telinha por meses a fio para acompanhar a trajetória de personagens. O executivo também analisa os impactos das séries e novos formatos narrativos no gênero e projeta que a novela do futuro será uma mistura entre a conveniência da TV linear com a liberdade de consumo e de escolha já ofertadas pelas plataformas de streaming. Confura alguns trechos:
Meio & Mensagem — A telenovela está presente em boa parte dos 70 anos de história da TV. Quais são as mais importantes e impactantes transformações pelas quais esse gênero passou?
Silvio de Abreu— A primeira telenovela diária no Brasil completa 56 anos com um imenso sucesso junto ao público. Acredito que essa paixão acontece porque a nossa novela como temática, estilo e narrativa, produção e interesse, se renova sempre. A novela, como nenhum outro produto cultural de massa, acompanha a sociedade brasileira, mostrando suas questões, suas dimensões contraditórias, e representa, através de suas tramas e personagens, os sonhos e problemas cotidianos do nosso povo, proporcionando um entretenimento da mais alta qualidade que mantém um diálogo permanente com o público. Desde O Direito de Nascer, que foi o primeiro grande sucesso nacional, em 1964, um ano e três meses depois do encerramento da primeira novela diária, 25499 Ocupado, a telenovela passou por inúmeras renovações com Os Rebeldes, Beto Rockfeller, Véu de Noiva, novelas escritas por autores nacionais que deixaram de lado os originais argentinos e mexicanos e criaram a nossa própria identidade em produções como Antônio Maria, A Viagem, Mulheres de Areia, Anjo Mau, Irmãos Coragem, Pecado Capital, O Bem Amado, Saramandaia, Avenida Brasil, Escalada, Renascer… cada uma dentro de um estilo de narrativa que, depois, veio a transformar de maneira mais anárquica com Guerra dos Sexos, Uga-Uga, Vamp, Cambalacho, Que Rei Sou Eu?, sem falar nas dramatizações de obras literárias, como O Tempo e o Vento, A Muralha, Éramos Seis, Olhai os Lírios do Campo e Senhora. Cada uma dessas novelas, e de muitas outras, contribuiu para essa renovação constante que é o alicerce desse imenso sucesso.
M&M — De que forma o contato do público brasileiro com outros formatos de dramaturgia, sobretudo as séries internacionais, interfere na produção de uma novela?
Silvio — Novela é novela. Série é série. São gêneros diferentes e não há por que misturar. Acredito que seja um equívoco achar que devemos fazer novelas baseadas em séries. Não se deve acreditar que é só nas séries que acontece algo relevante a cada capítulo, e na novela não. A narrativa de uma novela é completamente diferente da narrativa de uma série. E quem gosta de novela gosta de novela — e quem gosta de série, gosta de série. E tem muita gente que gosta dos dois – que, com certeza, se diverte mais! Há público para todos os gêneros. Uma história bem escrita, dirigida e interpretada será sempre bem sucedida, não importando o formato, ritmo ou estética. As séries têm seus encantos e valores, e a novela tem sua personalidade própria. Nenhum dos dois precisa se espelhar no outro para conquistar o público.
M&M — O crescimento das discussões em torno de equidade e, sobretudo, representatividade, acabou também ecoando nas novelas. Como vê essa questão?
Silvio — Quando vemos uma novela de 20 anos atrás, por exemplo, podemos ver o reflexo da sociedade daquele tempo. Seja no figurino, na maneira de os personagens falarem e se portarem, e, especialmente, nos assuntos tratados. A questão da representatividade — que não é recente, mas fica, cada vez, mais potente na sociedade — pode ser vista, de forma mais contundente, nas obras mais atuais. Sejam obras de dramaturgia ou variedades. E isso é um movimento no mundo todo, não só no Brasil. O artista tem que fazer aquilo que ele acredita, mas com responsabilidade. Tem que se adaptar, pois a sociedade vai mudando, e a novela é um espelho da sociedade. E claro, como artista, você tem que estar sempre querendo ir além, empurrar os limites. Essa é a missão do criador: ele tem que abrir campos, ter novas ideias e tem que fazer obras mais relevantes. Hoje em dia, estamos atentos à representatividade, seja na frente das câmeras ou atrás delas. Sabemos qual é o alcance das novelas, a responsabilidade que temos com o público que nos acompanha e a relevância desses temas para toda a sociedade.
M&M — Em sua carreira, tanto como autor como, posteriormente, diretor de núcleo, você lidou, logicamente, com projetos muito bem sucedidos e com outros, que não tiveram o mesmo sucesso. Quais são os fatores principais que definem o sucesso ou o fracasso de uma novela?
Silvio — Um dos caminhos para o sucesso é olhar para o público e entender o que ele quer naquele momento, e a partir daí contar uma boa história, bem realizada, produzindo um entretenimento relevante e de qualidade. Para agradá-lo mas também para surpreendê-lo. Já escrevi novelas que se comunicaram bem e outras que tiveram problemas. Posso citar uma experiência que tive quando escrevi Rainha da Sucata, que foi uma novela de enorme sucesso, mas que tive que corrigir o rumo da trama após a estreia. Comecei a novela escrevendo uma comédia, num horário em que a audiência esperava um grande melodrama. Quando estreou, foi um choque. As pessoas falavam: ‘isso não é novela das oito!.’ A novela teve muita rejeição e eu tive que reformular a narrativa da parte dramática e deixar a comédia com os personagens do núcleo coadjuvante. Depois de equacionada, foi um sucesso. Em Guerra dos Sexos, apesar de todas as inovações propostas, o sucesso foi instantâneo, mas não tive a mesma sorte em A Incrível Batalha Das Filhas Da Mãe no Jardim do Éden, que a meu ver era uma novela muito divertida, mas não agradou a maior parte do público. Adoraria saber precisamente quais são os fatores determinantes do su
cesso e do fracasso, mas isso, duvido que alguém possa responder com precisão.
M&M — A novela foi um dos produtos que ajudou a formar o que chamamos de hábito de assistir televisão. Com as novas plataformas mudando as formas de consumo de conteúdo, de que maneira você imagina que será a novela do futuro?
Silvio — Eu acho que vai ser uma convivência entre diferentes maneiras de ver TV, com espaço, sim, para uma grade de programação linear. Parto da experiência que vivemos hoje com as novelas, que continuam sendo um grande sucesso, seja em sua exibição numa grade fixa — como na TV aberta e por assinatura —ou também no streaming. Hoje, através do Globoplay, as pessoas já assistem à novela também pelo celular. Você pode assistir na hora e onde você quiser e, no entanto, muitas pessoas continuam assistindo naquele mesmo horário. É um modo de vida. A grade da TV ainda organiza a vida de uma geração. Não sei se futuramente teremos outro modelo. Mas acho que a tendência é a sobrevivência de todos os modelos. Vai ter modelo para quem busca conveniência e para quem não abre mão de assistir à novela na hora em que é exibida e de comentá-la com seus amigos ou na rede social. Essa emoção não vai acabar. E imagino que a composição de todas essas ofertas de serviços e ferramentas façam parte do consumo de entretenimento do futuro.
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