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Opinião

Nada será como antes

Há 50 anos, o Brasil assistia ao início de uma fase de ouro da indústria fonográfica no país


2 de março de 2022 - 15h22

(Credito: ANTHONY-PAZ-shutterstock)

Muito tem se falado do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, considerada um marco na história cultural brasileira, inclusive com vários questionamentos sobre a sua real importância. No entanto, trazendo essa linha do tempo para mais próximo dos dias atuais, há um recorte temporal muito rico também, sobretudo na música popular brasileira e internacional: o ano de 1972.

Há 50 anos, a música brasileira vivia um de seus anos mais intensos. O período marcava não apenas a maturidade de toda uma geração de artistas que surgiu e se encontrou a partir do acontecimento da bossa nova, como assistia ao início de uma fase de ouro da indústria fonográfica no país, quando milhões de discos eram vendidos mesmo se eles não tivessem apelo comercial, permitindo o surgimento de novos artistas. Fazem parte desse grupo cinco discos que sintetizam o caldeirão cultural daquele ano especial: a principal unanimidade da discografia de Caetano Veloso, “Transa”; o registro que mostrou que os Novos Baianos eram muito mais do que uma banda de rock, com “Acabou Chorare”; a consolidação de Elis Regina como a maior intérprete brasileira, com “Elis”; o disco que viu a volta de Gilberto Gil ao Brasil, depois do exílio em Londres, “Expresso 2222”; e o disco em que Milton Nascimento revelou uma geração brilhante de conterrâneos com “Clube da Esquina”.

Esse último, mais do que um disco, marcou também um movimento que colocou definitivamente Minas Gerais no mapa da MPB com talentos excepcionais, como os irmãos Lô e Marcio Borges, Beto Guedes, Ronaldo Bastos e Fernando Brant, guiados “pela inquietação e pela genialidade” de sua figura maior, Milton, também conhecido como Bituca. Em entrevista ao podcast O Assunto, o jornalista e antropólogo Paulo Thiago de Mello, autor do livro sobre o Clube da Esquina resgatou o contexto histórico em que vieram à luz canções como “Cais”, “Trem Azul”, “Um Gosto de Sol” e “Nada Será Como Antes”. Segundo Mello, elas refletem “a angústia e a asfixia” da pior fase da ditadura militar. Sinal disso, diz ele, é a presença de estrada em quase todas as letras, como “um portal para um universo que está no interior, e que só quem bota a mochila nas costas pode encontrar”. Chamado a comparar “Clube da Esquina” a outros discos seminais que também saíram naquele mesmo ano de 1972, Paulo Thiago afirma que Milton e seus amigos levaram “o interior para a beira mar” e que “A revolução deles foi musical”.

No cenário internacional, 1972 também foi profícuo. Ao menos duas obras-primas foram lançadas naquele ano. A primeira, em junho, foi nada menos do que “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”, a obra que consagrou o estrelato de David Bowie na história de um alienígena que caiu na Terra para salvá-la e perdeu tudo, menos o legado. Desde a metade dos anos 1960, Bowie sabia que sua aparência transmitia ambiguidade: ele tinha um rosto e um corpo bonitos, que chamavam a atenção tanto de homens como de mulheres. Agora, no início da década de 1970, a transgressão era permitida – a homossexualidade tinha sido descriminalizada na Grã-Bretanha em 1967 – e Angela, sua primeira esposa, pressionou o marido para usar seu apelo andrógino com mais ousadia.

Inaugurando o estilo que viria a se chamar glam rock, com suas roupas exageradas, às vezes fantasiosas, maquiagem carregada e uma música frenética, com bateria e guitarras aceleradas e a presença marcante do sintetizador, Bowie tirou partes de Ziggy de vários lugares, mas especialmente, dos exemplos de Lou Reed, do Velvet Underground, e Iggy Pop. Embora fizessem música influente que se diferenciava dos valores dominantes, ambos passavam ao largo dos críticos e do público.

E foi um empurrão de Bowie que ajudou a segunda obra-prima também lançada em 1972, no cenário internacional: o álbum “Transformer”, de Lou Reed. Embora nunca tivesse sido um artista popular, Reed era imensamente admirado pelos colegas. Entre eles, o próprio Bowie, que decidiu produzir, junto com seu guitarrista, Mick Ronson, o novo disco de Reed, lançado em 8 de novembro de 1972. Se não foi um triunfo comercial (nenhum álbum de Reed foi), tornou-se um disco clássico, com sua mistura de melodias doces e letras brutais e ultrarrealistas com canções como “Perfect Day”, “Satellite of Love” e a clássica “Walk on The Wild Side”. Tocando em tópicos então controversos, como orientação sexual, identidade de gênero, prostituição e uso de drogas, a obra de Lou Reed o consagrou como uma grande referência da cena pop ocidental, trajetória iniciada na banda que formou ao lado de John Cale, o Velvet Underground, cuja carreira influenciou nove entre dez bandas de rock das décadas seguintes.

Chama a atenção o contexto que levou a tanta produção musical de qualidade naquele distante 1972. Internacionalmente, o ocidente estava em polvorosa por causa dos acontecimentos recentes. A pílula anticoncepcional já tinha mais de uma década de estrada, a ponto de se tornar o pano de fundo do slogan que marcaria os protestos contra a guerra do Vietnã – faça amor, não faça guerra; a cultura seguia por um caminho de desconstrução; o mundo assistia à ascensão de ditaduras na América Latina, encontrando no Brasil sua fase mais aguda, o que levou uma geração de talentos que viam na música uma forma de traduzir a opressão e a perda de liberdade que o país atravessaria ainda por mais de uma década.

A singela homenagem que o Clube da Esquina ganhou da publicidade com a campanha do QuintoAndar, no início deste ano, mostrando a importância da casa em que Milton, Lô Borges e Beto Guedes moraram juntos em Niterói, onde começou a ser gestado um dos álbuns mais importantes da MPB, deixa evidente que revisitar os clássicos sempre rende bons frutos e ótimas releituras, mostrando o quão atuais ainda permanecem.

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