Qual é o papel das marcas no combate ao racismo?
Publicitários negros comentam repercussão do movimento antirracista recente no Brasil e boas práticas para empresas que querem se aliar
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Thaís Monteiro
3 de junho de 2020 - 6h00
Na última semana, a partir da repercussão do assassinato de George Floyd, homem negro sufocado até a morte por um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos, marcas globais, como Adidas, Nike, Netflix, YouTube, Viacom e Disney se posicionaram em repúdio ao racismo e reforçaram seu compromisso com a igualdade racial. Ocorrida duas semanas antes, a morte de João Pedro, adolescente negro baleado em sua casa durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro, não causou repercussão em meio às marcas presentes no Brasil.
Nesta semana, no entanto, após os protestos que tiveram início nos EUA em função da morte de Floyd e que se espalharam por várias cidades ao redor do mundo, inclusive brasileiras, deu-se início a uma comoção também entre marcas brasileiras ou que estão presentes no mercado local e ganhou ainda mais força com os movimentos #BlackOutTuesday e The Show Must Be Paused (o show deve ser pausado), lançados nas redes sociais pela indústria da música propondo que gravadoras, rádios e artistas interrompam suas programações ou falas na internet.
O Brasil vem de um longo histórico de crimes raciais, mas neste caso, em especial, a manifestação das marcas ganhou proporção após o tema ter ganhado força nos EUA. Isso ocorre, segundo Samuel Gomes, publicitário, escritor e criador de conteúdo, por que “o Brasil ainda repete o que os EUA faz”. Conforme explica Levis Novaes, cofundador e líder de estratégia do MOOC, apesar de ter uma população negra menor em comparação ao Brasil, nos EUA ela ocupa posições maiores dentro das empresas de diversos mercados, o que possibilita que a voz do movimento se amplie.Outro grande propulsor para amplificar o debate foi o poder de propagação das redes sociais, ambiente virtual no qual os americanos são mais ativos, diz Paulo Rogério Nunes, empreendedor, consultor de diversidade e autor do livro “Oportunidades Invisíveis”. “Nos EUA, a população negra é muito mais ligadas nas redes sociais, por isso existe o termo Black Twitter, que se refere a participação negra consideravelmente ativa no Twitter e faz com que a cobrança em relação ao Estado e às marcas seja muito maior. Quando o vídeo da agressão contra Floyd surgiu, rapidamente ele viralizou por lá”, conta Paulo.
“Eu percebo que esse movimento trouxe uma grande lição ou colocou em xeque como as marcas brasileiras trabalham com esse tema. Algumas que têm subsidiárias aqui e repostaram o conteúdo das globais e fizeram algum link com a situação dos jovens que foram assassinado no Brasil nos últimos 15 dias, principalmente o João Pedro, mas em geral as marcas ficaram silenciosas ou omissas a esse tema”, pondera Nunes.
Em um levantamento conduzido pela agência Responsa, em março, Samuel Gomes, até então head de criação (a agência teve suas atividades encerradas em maio), diz ter ouvido de algumas marcas que não fizeram ações direcionadas à população periférica porque a concorrente já havia feito, o que poderia ser lido como cópia. O que muitas vezes também acontece em casos de manifestações de repúdio como as que vem ocorrendo neste momento. “No entanto, não importa se as pessoas vão achar que você tá copiando ou não. O importante é que a ação seja feita.”De acordo com Samuel, no Brasil, há um impeditivo para as manifestações ganharem escala: a associação da luta antirracista a lados políticos. “Seja com um governo de esquerda ou direita, a vida negra é ceifada do mesmo jeito”, diz. No momento atual, há uma confluência de manifestações antirracistas e antifacistas. “Várias pessoas vão atravessar mais de uma pauta, mas quando você mistura, você não encontra qual é a raiz do problema. Até você achar a raiz, você já se perdeu e acaba solucionando um problema só ou às vezes nenhum. É preciso trabalhar individualmente para ser estratégico e objetivo na solução. Por isso muitas pautas são historicamente invisibilizadas”, contextualiza Levis.
Ao Meio & Mensagem, os profissionais de comunicação compartilharam como as marcas podem se aliar à luta antirracista:
Ações imediatas
É imprescindível que as empresas, como prestadoras de serviços à sociedade, comuniquem suas opiniões. “As marcas precisam representar seus consumidores, que são multiculturais, tem diversas origens e consomem seus produtos. Não seria justo, nesse momento em que seus consumidores mais precisam do seu apoio, as marcas dessem as costas e ignorarem os problemas”, argumenta Nunes.
Atualmente, a população negra e periférica também luta para manter-se saudável durante a pandemia e no pós, seja mentalmente ou financeiramente. Para Samuel, é papel das marcas oferecer alternativas para garantir a segurança dessa população para além do posicionamento antirracista.Realocação de recursos
Como no caso do novo coronavírus, para Samuel, há uma grande oportunidade para as marcas se fazerem presentes na luta diária ao oferecer recursos para projetos sociais, de capacitação ou até para fomentar a cultura e entretenimento negros. “Eu trabalho com publicidade e sei que muito dinheiro é investido pra fazer eventos, seria muito mais legal se parte desse investimento fosse para a população negra, seria muito mais barato e traria muito mais retorno”, coloca.
Algumas empresas já se mobilizam para além de se posicionarem doar quantias em prol da justiça social. O YouTube, por exemplo, vai destinar US$ 1 milhão a essa causa. “Estamos em solidariedade contra o racismo e a violência. Quando membros de nossa comunidade se ferem, todos somos feridos”, afirmou a empresa.
Além do apoio verbal
O posicionamento ou nota de repúdio em um post nas redes sociais não basta. De acordo com o cofundador do MOOC, as empresas têm que planejar ações práticas e traçar metas que demonstrem claramente o que farão para mudar o cenário, seja na contratação de profissionais negros, dando voz ativa aos colaboradores negros de sua empresa e ampliando a discussão da pauta no ambiente de trabalho. Para Levis, chegou o momento das empresas se comprometerem com a evolução estrutural. “Apoio verbal é muito lindo, é muito bom, porém ele não soluciona os problemas e a gente sabe disso”, afirma.“Existe um tempo de reação demorado por n questões burocráticas, de aprovação, medo de se posicionar de forma errada. O tempo de reação das marcas é muito lento e muitas vezes a gente vê que, quando elas se posicionam, se posicionam por uma onda e não sabem o que elas estão falando e aí fica no discurso vazio, e o discurso vazio cada vez menos vai se sustentar”, defende.
Como já vem sendo debatido há uns anos, a pauta da representatividade dentro das organizações continua como pilar importante na luta antirracista. Os publicitários destacam que as empresas devem evidenciar quais são as pessoas negras que estão no ambiente de trabalho não só nas frentes das câmeras, mas nos bastidores também. Para isso, a grande lição é falar com quem entende do assunto, como consultorias voltadas a promoção da diversidade e empreender na contratação e revisão de processos para um ambiente não só mais diverso mas também favorável às discussões de cunho social. “Eu fui head de criação de uma agência e eu garanto que a maioria das pessoas que trabalham com publicidade nunca tiveram um head negro”, afirma Samuel.
Também se faz necessário programas não só de inclusão mas de desenvolvimento e crescimento dessas pessoas dentro das empresas, capacitação e garantia de que negros tenham suas posições e economias ampliadas, diz Levis. “Já há programas nesse sentido no mercado da comunicação, mas que são super recentes levando em consideração o tempo de existência do mercado”.
Manter a conversa
“Me parece que é realmente um debate franco com o mercado, com os governos e com a sociedade civil de que é necessário realmente um novo pacto social de inclusão. Uma empresa do século XXI tem que ser atenta às questões sociais, que realmente esteja do lado do cliente no momento em que ele mais precisa. E as marcas precisam estar junto dessa comunidade global para dizer que elas repudiam isso, porque as marcas são feitas de pessoas. Significa que os CEOS, VP e diretoria devem agir de maneira efetiva”, argumenta Paulo.
“Eu acredito que daqui pra frente nossas vozes serão cada vez maiores e teremos pessoas em posições cada vez mais relevantes. Eu acredito no poder que as pessoas têm no Brasil para falar: vidas negras importam. Eu acredito que, como a maior parte da população no Brasil negra, elas conseguem se conectar e fazer valer a vida de cada pessoa negra desse lugar, de cada pessoa que ajudou a formar essa nação, por cada pessoa que existe e está fazendo esse movimento e por cada pessoa que virá. A ideia são condições melhores para as pessoas que virão, para a educação de pessoas negras na favela, fora da favela, seja de onde for. A gente acredita muito na transformação, mas ela só acontece quando todas as pessoas entendem o que está acontecendo nesse momento na sociedade”, conclui Levis.
**Crédito da imagem no topo: Nazarkru/iStock
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