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A falta de um retrato completo

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Opinião

A falta de um retrato completo

Um fato observado sob um ponto de vista, te dá uma impressão. Observado sob um outro ponto de vista, te dá uma impressão completamente diferente


29 de abril de 2022 - 13h16

Crédito: Divulgação

“Um fato observado sob um ponto de vista, te dá uma impressão. Observado sob um outro ponto de vista, te dá uma impressão completamente diferente. Porém, só quando você tem o retrato do fato por inteiro é que é possível entender a totalidade do que ocorreu.” Traduzido aos trancos e barrancos, este é um texto que considero fundamental na história da publicidade.

As cenas que ilustram esse texto contam três momentos bem distintos. Cada frase acompanha um determinado momento. No começo do comercial, vemos um homem que parece estar fugindo. No outro ponto de vista, vemos esse mesmo homem indo na direção de um senhor que está de costas para ele. O senhor parece perceber a chegada do homem e vira para se proteger. Ele usa a sua pasta de trabalho para se defender daquilo que parece ser um assalto. Até que finalmente, a câmera nos revela a cena por inteiro. O homem correu na direção do senhor porque ele estava caminhando próximo a uma obra. Uma parte do material da obra está sendo içada e o homem percebe que o material vai desabar sobre o senhor. Então, aquilo que sob um ponto de vista parecia ser um homem em fuga, que sob outro ponto de vista parecia ser uma cena de assalto, acaba por revelar que era, na verdade, um ato heroico de salvamento.

Esse é considerado um dos melhores comerciais de todos os tempos. “Points of View” é o nome da peça, o jornal “The Guardian” era o cliente, a agência era a BMP. Frank Budgen foi o redator dessa pequena maravilha que nos ajuda a refletir sobre o papel do jornalismo, mas também sobre como devemos observar os fatos em um mundo cada vez mais complexo. Onde a verdade é facilmente manipulável. Não bastasse ter criado este comercial, Frank construiu uma carreira brilhante como diretor. Das suas mãos e do seu olhar saíram incontáveis obras atemporais da publicidade. “Tag” de Nike, “Mountain” de Playstation, a corrida de lesmas da cerveja Guinness, a fuga do sofá de Reebok são apenas algumas delas. Recomendo a leitura de textos de algumas pessoas que trabalharam com Frank Budgen: https://davedye.com/2019/08/27/hands-up-whos-heard-of-frank-budgen/

“Points of View” é uma peça de publicidade criada no distante ano de 1986. Se parte da realização pode até soar datada para alguns, não podemos dizer o mesmo da mensagem. Trinta e seis anos depois continuamos a observar pontos de vistas distintos serem puxados para os extremos sem que a gente consiga chegar a um retrato completo dos fatos. Fica a sensação de que quase ninguém quer ouvir ou refletir. Todo mundo quer apenas falar. Porque dialogar pode nos levar a uma desconstrução das nossas crenças. Ou das nossas verdades absolutas tão valiosas.

Em uma palestra pré-pandêmica que tive a oportunidade de assistir, o neurocientista Facundo Manes dissertou sobre o fato de o cérebro humano trabalhar de uma forma parecida há mais de 60 mil anos. Detectamos o perigo e, então, temos que tomar uma decisão: fugir para sobreviver ou enfrentar. Na palestra, ele ilustrava essa fala com um exemplo de um vulto de uma cobra. O que é mais importante? Sobreviver na crença do deixa para lá ou chegar pertinho e comprovar que é mesmo uma cobra? Pense em quantos incautos (ó que bicho fofinho) e corajosos morreram até que a gente aprendesse a lidar minimamente com as cobras e seus vultos. Uma curiosidade aqui: a antropóloga Lynne Isbell, no livro “The Fruit, the Tree, and the Serpent: Why We See So Well” traça a teoria que o sistema visual evoluiu nos últimos 60 milhões de anos para detectar os répteis. Saber que o perigo (ou a verdade) existe nos poupou da extinção.

Hoje, para quase todo assunto há a falta de um retrato completo. Um grupo defende a empada com azeitona como a única alternativa possível. O outro defende a extinção das azeitonas nas empadas, nos pastéis e, se possível, de toda a gastronomia. Discutir como chegar àquele ponto entre o esfarelamento e o derretimento perfeito da empada, ninguém quer. Estamos lidando com assuntos como quem lida com o coentro ou com a bala de canela. É amor ou porrada. É “gosto de sabão” ou “tempero essencial”; “sabor de desinfetante” ou “você não tem paladar para isso”. É a “coentrização” das discussões em quase todas as esferas.

Nessa mesma palestra citada, Facundo Manes falou do conforto que existe em ficarmos abraçados às nossas crenças. Especialmente, quando encontramos um grupo para chamar de nosso. Lembro da avó de um amigo que não acreditava de jeito algum que o homem tinha ido à Lua. E da felicidade que ela tinha em citar os amigos que compartilhavam da mesma opinião e de espinafrar o grupo que não acreditava nela. Não havia dominó que resolvesse aquela cisão. Hoje, inclusive, ficou muito mais fácil achar uma turma toda sua. Um exemplo? Vi uma manchete que dizia: “Por dentro do ‘Tinder antivax’: o grupo de namoro onde vacinado não entra”.

Volto ao complexo da “coentrização”. Segundo um estudo da Universidade de Chicago feito por Nicholas Ericksson, o coentro é rico em aldeído, um composto orgânico presente na baunilha, na canela e no sabão. Quem não gosta de coentro ou da bala de canela, pode ter uma sensibilidade ao aldeído nos receptores olfativos do cromossomo 11. Daí, fica realmente impossível gostar. Não é uma percepção de gosto. É genético em alguns dos casos. E isso traz uma nova camada de informação para os times do coentro e da bala de canela. Ou, pelo menos, um retrato mais completo mesmo em um assunto tão banal. Caso não seja genético, tente colocar o coentro no início do cozimento que fica mais suave.

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