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Opinião

Assim tocam meus tambores

Num momento no qual nunca se consumiu tanto conteúdo, a Twitch se coloca como uma oportunidade de reinvenção para muitos artistas que, por meio da plataforma, podem entender as dinâmicas de suas comunidades


18 de agosto de 2020 - 13h07

(Crédito: Reprodução)

Na noite da sexta-feira 7, enquanto estava em êxtase assistindo à live de aniversário de 78 anos de Caetano Veloso — além de experimentar um raro suspiro de alegria, esperança e alento em meio ao caos desses infindáveis dias da marmota a que estamos confinados —, um dos pensamentos que passavam pela minha cabeça era o de que se não fosse exatamente pela pandemia, não iríamos ter o privilégio de ver o que estávamos vendo naquele momento. Após ouvir, contemplar aquela estante exuberante, onde cada espaço foi milimetricamente ocupado tecendo um mosaico da vida de um dos maiores artistas brasileiros vivo e me deliciar assistindo à uma mágica comunhão de um pai com seus três filhos, todos músicos, fui dormir mais leve.

Naquele mesmo dia 7 também chegava ao fim um dos projetos mais interessantes feitos por um outro artista contemporâneo nestes tempos de pandemia. Marcelo D2 começou pouco mais de um mês antes, em 4 de julho, uma jornada de transmissões ao vivo pela plataforma Twitch que resultou no seu mais novo trabalho que acaba de ser lançado.

Emprestei o título deste texto exatamente deste seu novo álbum: “Assim tocam meus tambores”. A obra foi concebida totalmente de forma aberta, coletiva, a partir de gravações, entrevistas e conversas feitas nessas transmissões. Em um dos depoimentos sobre o trabalho, disponível em vídeos curtos que funcionam como divulgação da obra em outras plataformas, como o Instagram, por exemplo, D2 conta que começou a fazer o disco sem ideia nenhuma. “Só sabia o nome. O resto fui aprendendo no processo. É muito interessante porque o entusiasmo das pessoas me vendo fazer aquilo me entusiasma também. É natural que, no meio de um disco, você comece a ter dúvidas. Aqui, as dúvidas, muitas vezes, caem na hora”, afirma o músico.

A experiência de dividir esse processo quase catártico e nem um pouco convencional com os fãs deu um novo contorno à essa jornada. Eles opinavam em tempo real e muitas daquelas opiniões foram sendo incorporadas ao processo. Outra inovação da obra é a criação coletiva e feita de muitas maneiras. Há colaboradores, incluindo músicos com quem D2 nunca havia trabalhado, que entraram no disco depois de ver as transmissões. Em alguns casos, os convidados foram sugestões do público.

Entre os parceiros estão Maria Rita, de quem D2 compartilhou várias trocas de áudios nas transmissões. Além dela, fazem parte do álbum Djonga, Juçara Marçal, Don L, BK, Criolo, Liniker, Tropkillaz, Baco Exu do Blues e seu filho Sain. Em um dos vídeos de divulgação do trabalho, a ambição da obra se coloca de forma imponente: “A revolução não será televisionada. Será via live streaming e com Marcelo D2 no comando”.

A criação coletiva de alguma maneira extrapola a música. Numa das transmissões, D2 entrevistou seu advogado e a conversa girava em torno do assunto direitos autorais. O convidado, então, para ilustrar o sujeito sobre o qual conversavam — os aproveitadores, pessoas que indevidamente cobram na Justiça a autoria de uma obra —, inventou um personagem chamado Galinha. Com a interação via chat com os fãs, rapidamente Galinha deixou de ser apenas um elemento de uma conversa e virou sinônimo de vacilão e o trecho do bate papo em que ele foi citado foi sampleado.

Além do advogado, o músico também entrevistou o historiador Luiz Antonio Simas, autor do livro “O Corpo Encantado das Ruas”, no qual trata sobre os tambores, suas ligações de matriz africana e do samba. Ele ajudou o rapper a tecer o conceito do álbum e emprestou a voz ao disco.

“Assim Tocam Meus Tambores” marca também um ponto de virada importante na estratégia da Twitch no Brasil, país em que os recordes são constantes, mas, até então, sempre vindos do universos dos streamers de gamers. A plataforma de conteúdo da Amazon quer agora ir além e vem se estruturando no Brasil para mostrar que seu ponto forte é conteúdo e comunidade e que é possível também navegar em outros territórios.

A grande aposta da plataforma para o País nesse momento é o lançamento de sua vertical de música que conta com 11 artistas, dos quais o projeto de Marcelo D2 é ponta de lança. Além dele, fazem parte desse elenco Kondzilla, Laboratório Fantasma, Criolo, Pitty, Baiana System, Tropkillaz, Jaloo, Mel, Felipe Ret e Só Track Boa. Num momento no qual nunca se consumiu tanto conteúdo, a Twitch se coloca como uma oportunidade de reinvenção para muitos artistas que, por meio da plataforma, podem entender as dinâmicas de suas comunidades em um ambiente muito conhecido pela versatilidade do ecossistema gamer.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, Marcelo D2 contou como tudo começou a partir de um convite da Twitch: “Queria fazer uma performance artística. Comecei cozinhando, mas não sou um artista da cozinha. Era mais uma brincadeira, para aprender a me comunicar nessa via. Ficar fazendo live eu não achava interessante. Aí vi que posso ser um streamer – não de games, mas de arte. O que eu faço é audiovisual, e o movimento natural foi fazer um disco.”

O manifesto da estreia do projeto tem mais de 10 horas de duração. Tudo a partir de sua casa. O hip-hop é por essência um estilo musical que bebe na fonte da cultura da apropriação e exatamente por isso tudo em “Assim tocam os meus tambores” faz muito sentido.

Em um momento de total distopia, o essencial vem à tona. Sorte nossa que temos artistas como Caetano Veloso e Marcelo D2 para nos encher de esperança e rara beleza no meio do caos e nos dar a esperança de que coisas belas e poderosas também vêm à tona nas adversidades.

*Crédito da foto no topo: Josh Rose/ Unsplash

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