Intimidade revelada e editada
Mais recente fenômeno editorial mundial, autobiografia de Michelle Obama traz importante reflexão acerca da privacidade e da dimensão pública
Mais recente fenômeno editorial mundial, autobiografia de Michelle Obama traz importante reflexão acerca da privacidade e da dimensão pública
Poucas figuras públicas têm a exata noção de sua dimensão e tamanho como o casal Obama. Há poucos dias, terminei de ler o livro Minha História (Objetiva, 2018), autobiografia de Michelle Obama. A leitura teve início na mesma semana em que Lori Lightfoot, uma ex-promotora federal, venceu Toni Preckwinkle, por 74% a 26% dos votos e tornou-se, assim, a primeira mulher negra e gay a ser alçada ao posto de prefeita de Chicago. Pela primeira vez também, duas mulheres afro-americanas disputaram o pleito pelo comando da terceira maior cidade dos Estados Unidos e uma das mais violentas do país.
Dividida em três partes, a autobiografia começa com a seção “Minha história”, um olhar sociológico profundo sobre Chicago, suas raízes e as instituições da cidade. As partes sobre o processo de gentrificação da metrópole, educação pública, raça e classes lembram que Michelle se formou em Sociologia e cursou Estudos Afro-Americanos na Universidade de Princeton antes de ir para Harvard cursar Direito. Isso tudo depois de ouvir de uma orientadora que “não fazia bem o tipo” de Princeton, a despeito de seu currículo exemplar e compatível com o nível da universidade. “Naquele dia, ao sair da sala da orientadora, eu estava furiosa, o ego ferido mais do que tudo. Naquele momento, meu único pensamento era: vou mostrar a você”, escreve.
A segunda parte do livro, “Nossa história”, é um olhar sobre seu romance com Barack Obama, a construção da família e a sua procura por um trabalho de que gostasse genuinamente, deixando para trás a promissora carreira de advogada em ascensão. Aqui, na minha opinião, reside a melhor parte do registro. As diferenças entre as formações familiares de Michelle e Obama dão elementos ricos e detalhados de como foram talhadas ambas as personalidades. Michele, filha de um casal oriundo da classe trabalhadora, criada em um bairro modesto de Chicago. Seu pai fora funcionário público da prefeitura e sua mãe passou boa parte de sua existência como dona de casa, cuidado dos dois filhos e trabalhou como assistente administrativa quando esses cresceram para ajudar a pagar seus estudos em prestigiosas universidades da chamada Ivy League. Além de Michelle, o casal teve Craig, seu irmão mais velho. Esta sólida base familiar ajudou a formar uma personalidade planejadora, determinada e controladora.
Obama, por sua vez, nasceu no Havaí, filho de um pai também chamado Barack Obama, que nascera no Quênia e se mudara para o estado americano após ganhar uma bolsa de estudos. E lá conheceu sua segunda esposa. O casamento não durou e eles se separaram logo após o nascimento do filho. Criado pela avó materna, via sua mãe poucas vezes, pois esta se mudou para a Indonésia. Tem meios irmãos de ambos os lados e com duas delas cultiva uma relação afetiva. Essa família fluida e multicultural deixa marcas indeléveis em sua personalidade.
É nesta parte do livro que Michelle revela, por exemplo, detalhes de sua intimidade que vão desde as confidências sobre o casal ter tido dificuldades para engravidar, passando por um aborto espontâneo e, que suas duas filhas nasceram por fertilização in vitro, às crises e conflitos que a maternidade traz mesmo para uma mulher que tem voz e espaço social.
A terceira parte, “Uma História Maior”, percorre a sua vida como figura pública. Contém a sua visão do que é o seu legado e do que alcançou enquanto primeira-dama, assim como o que sentiu ao viver debaixo de intenso escrutínio. Escreve que, ao fazer campanha para a reeleição do marido, em 2012, se sentiu atormentada pela forma como a criticavam e pelas pessoas que tinham uma opinião sobre ela por causa da cor da sua pele. Com reflexões sinceras e honestas sobre a gangorra de ser considerada “a mulher mais poderosa do mundo” a ser classificada como uma “negra furiosa”, Michelle expõe com coragem os dilemas de ser julgada a todo tempo.
Em um determinado momento, no início da campanha ainda pelas plenárias do Partido Democrata, em meados de 2007, dois diretores da equipe de comunicação de Barack a chamam para ver os vídeos de seus próprios discursos sem áudio. E mostram para ela como sua expressão é, por vezes, pesada e dura, algo explorado pelos oponentes de forma maldosa. Nesse momento, Michele reflete sobre a discussão do que considera ser a “ratoeira da negra furiosa”: “Eu era mulher, negra e forte, e isso, para certas pessoas… traduz-se em ‘furiosa.’ Era outro cliché preconceituoso, que sempre foi usado para empurrar as mulheres das minorias para os cantos das salas… E isso fazia-me sentir, de fato, um bocado furiosa, e depois passei a sentir-me pior, como se estivesse destinada a cumprir uma profecia feita pelos que me odiavam.”
Ouvi a parte final do livro em audiobook narrado em primeira pessoa pela própria Michelle. Uma experiência enriquecedora, uma aula de construção de narrativa e auto-análise sem afetação. Ao descrever sobre os aspectos mais comuns da sua história e sobre a sua singular viagem — e de ser a única inquilina da Casa Branca que teve um antepassado escravo, “Minha História” está prestes a se tornar o livro de memórias de maior sucesso da história editorial. Até o final de março havia superado os 10 milhões de exemplares vendidos. O lançamento foi em novembro passado, o que faz o grupo alemão de mídia Bertelsman acreditar que esse marco será rapidamente alcançado.
A Penguin Random House, editora controlada pela Bertelsman, venceu, em 2017, uma intensa guerra de lances pelos direitos de publicação das autobiografias de Barack e Michelle Obama, pagando o recorde de US$ 65 milhões por um acordo de dois livros com o casal. A expectativa é que os escritos do ex-presidente americano sobre seus dois mandatos — ainda sem data definida — repitam o sucesso da obra de Michelle.
Muito antes de outros na Casa Branca, Michelle e seu marido Barack usaram a cultura pop e as redes sociais para anunciar as suas iniciativas, moldar a sua marca pública e a sua própria história. Foi ela quem impulsionou a sua própria popularidade. E agora com um livro cheio de grandes marcas dá mais uma lição. De que é possível sim estabelecer os limites, mesmo que tênues, entre intimidade e dimensão pública.
*Crédito da foto no topo: Vedanti/Pexels
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