Meio & Mensagem
3 de outubro de 2013 - 9h49
Há muito tempo, quando o Flamengo ainda ganhava, saí do Maracanã com um amigo e ele cismou de comprar um pão doce. Achamos uma padaria próxima e ele comprou o tal colegial com aquela camada branca de açúcar. Corremos para o ponto e pegamos o 433 rumo à Copacabana. Reparo que um sujeito estranho está no banco da frente. Mal o ônibus anda e o indivíduo começa a olhar para trás. Surge uma tensão no ar. Ele resolve se virar completamente e pergunta: me dá um pedaço do pão doce? O meu amigo recusa sem pestanejar. O sujeito insiste. Eu resolvo virar o negociador e falo: dá um pedaço para o cara. O meu amigo cede e reparte a iguaria ao meio. O homem agradece e seguimos a viagem. Alguns minutos depois ele avisa ao motorista que vai descer. Levanta, olha para trás e mostra uma faca na cintura. Com o semblante mais calmo do mundo, ele revela o seu dilema: se você não me desse o pão doce, eu ia assaltar os dois. E sai de cena anestesiado sob o efeito do açúcar. Eu dou uma porrada no ombro do meu amigo como quem diz: e você não queria dar um pedaço, hein?
Relembro essa história ao descobrir que sou ríspido ao responder os emails. Quer dizer, não descobri nada. Tive que ser alertado dessa minha mania. Lógico que a minha primeira reação foi desdenhar. Dizer que era uma bobagem. Que, afinal, isso é trabalho. Um tempo depois parei para pensar.
A minha caixa postal está sempre cheia. Acabei desenvolvendo um sistema pragmático de respostas. Ok, combinado, feito, nem ferrando, amanhã falamos, não posso, não dá, comece a rezar. Um misto de ranzinzice com ironia. Sendo essa última, a especialidade da casa.
Uma das primeiras descobertas da direção de criação é que a sua ironia vira verdade. Então, tem que usar com parcimônia. Antes, eu dizia “não vou nessa reunião nem que você queira muito” e todo mundo ria. Hoje, se eu disser a mesma coisa, a mensagem é replicada: ele não vai na reunião. Ser chefe é ser levado ao pé da letra. Mesmo que você não queira, há uma distância. A confiança para alguns assuntos se esvai. No lugar, surge uma barreira que funciona como proteção para os dois lados. O problema é que ao mesmo tempo que protege, cada lado cria a sua verdade. Como bem diz o meu amigo Marco Monteiro, você sabe que é chefe quando deixa de ter assunto no café para ser o assunto do café.
Sinto que o trabalho nos embrutece aos poucos. Então, olho para o 433 como quem lê as escritas do Profeta Gentileza. À procura de uma docilidade esquecida. Estamos sempre no limite. Do tempo, do prazo, da paciência, do entendimento. Nesse ambiente, uma simples palavra pode ter um efeito poderoso. Um obrigado dito de verdade. Um parabéns olhando no olho. Um pedido de desculpas sincero. Repare que eu reforço com verdade, olho no olho e sinceridade. Porque no mundo onde curtimos tudo a todo instante, as palavras perderam a importância. Clicar na mãozinha do like não é exatamente gostar. É preciso ir além das águas rasas de um parabéns pelo Facebook. Boa parte das encrencas podem ser evitadas se você levar em consideração o outro. No fundo, todos nós queremos um reconhecimento legítimo.
Uma regra básica na negociação de reféns diz o seguinte: o sequestrador quer ser ouvido. O exemplo é exagerado de propósito. Pense em quantas negociações você faz ao longo do dia. Compare com as vezes em que você escutou o tema negociado verdadeiramente. A balança é desequilibrada. Eu sou réu confesso. Já deixei de olhar para o atendimento e foquei em qualquer coisa no meu monitor, na vã esperança de que o problema fosse embora. Ele nunca foi. Desentendimentos começam quando a gente não escuta o outro. Ou finge que escuta puxando um lado apenas do fone. Desse jeito, os reféns não sobrevivem.
Volto ao meu pragmatismo. Não há como ser longo e delicado em cada email, mas dá para ser mais cuidadoso. Para alguns é o excesso de exclamações ou a repetição de vogais. Não gosto muiiitooooo do resultado da equação!!! Nos dias de hoje, ler com atenção já é uma gentileza. Ouvir, então, é quase luxo. Contardo Calligaris escreveu um texto do qual gosto muito. Chama-se Oito normas de conduta cotidiana para o cidadão moderno. Escolho uma das normas: “Todos os pedidos podem ser recusados, mas devem ser, ao menos, reconhecidos. Portanto é proibido recusar sem falar.”
Você pode chegar longe sem precisar pensar em nenhuma norma. Nenhuma regra. Pode ser respeitado distribuindo carteirada e dando gritos no corredor. Viver à base de top-down. Há casos e mais casos de líderes que escolheram essa postura e foram bem sucedidos. Não é a única. Claro que ser legal e estar certo não é compatível a toda hora. Frustrar pessoas faz parte do nosso job. Talvez o ideal seja nem tão desconectado emocionalmente, nem tão passional. Um meio-termo.
Sento novamente no ônibus com o olhar de hoje. Para evitar um problema, às vezes, basta um pão doce. Um pequeno pedaço. Eu já deveria saber.
André Kassu, diretor de criação da AlmapBBDO
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