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18 de dezembro de 2014 - 7h58
Professor titular de ética e filosofia política na USP, Renato Janine Ribeiro é um estudioso da cultura política brasileira e internacional. Entrevistado por Meio & Mensagem para a edição de retrospectiva, o filósofo analisou a campanha eleitoral deste ano, a mais agressiva desde 1989, quando Fernando Collor derrotou Luiz Inácio Lula da Silva. A razão de tamanha hostilidade – "uma luta quase de morte", em sua avaliação – foi porque PT e PSDB receavam o futuro de seus partidos. Entre outros temas, Ribeiro abordou a tensão vista hoje na sociedade, sobretudo na classe média, que vê perder seu prestígio social (a questão não é dinheiro) com a ascensão dos mais pobres.
Na entrevista – publicada na edição 1640, com data de 15 de dezembro –, Ribeiro afirmou que o PSDB conseguiu uma votação alta, mas que isso deve ser considerado piso (não teto). Também observou que um partido que perde quatro vezes para presidência deveria, no mínimo, se reciclar. No caso do PT, o professor da USP observou que, se perdesse, ainda poderia tentar voltar ao poder no próximo pleito. O problema é que o partido não tem o apoio da mídia. “Ao contrário, é francamente hostilizado, muito mais do que antes de 2002”. Houve, portanto, grandes desafios para as campanhas de Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB).
Em relação à candidata Marina Silva, da Rede, o filósofo ponderou que ela escapou de um bombardeio como foi feito em cima dos dois principais concorrentes (três anos e meio sobre Dilma e um ano e meio sobre Aécio). No entanto, ela fez uma campanha extremamente fraca. “Talvez sido fraca porque não defendeu as ideias mais profundas dela. Focou no Banco Central em vez de falar em desenvolvimento sustentável”, explicou.
Quanto à classe média, caracterizada por contratar serviços privados pelos quatro itens básicos oferecidos à população (saúde, educação, transporte e segurança), Ribeiro disse que ela confunde o fato de que o dinheiro dela é mal aplicado com o fato de estar havendo uma ascensão social dos mais pobres. Esse movimento acaba por reduzir o “bônus de prestígio” que ela tem. “A classe média aceitou uma espécie de pacto em que ela pagava o plano de saúde, o carro, etc, e isso era de alguma forma vantajoso. Ela ficava ‘satisfeita’ que os outros estavam de ônibus. Ela tinha um prestígio. Quando vê que os mais pobres estão mais altivas e estão tendo melhores condições de vida, ela perde o bônus do prestígio. Em vez de ela brigar para que o setor público seja adequado e que ela possa usufruir de tudo isso sem pagar mais, ela briga porque os outros estão ameaçando a posição dela. A briga da classe média não é por dinheiro. É por prestígio. Nesse sentido, penso que essa postura retrógrada e reacionária que uma boa parte da classe média assumiu vem do fato de que um determinado discurso de ódio foi capaz de pegar nela por essa sensação de perda de seu caráter distintivo. Rico não tem essa perda. Rico não se sente ameaçado por pobre”, afirmou o filósofo.
Para a TV Meio & Mensagem, Ribeiro comentou ainda o que espera da política em 2015. Confira o vídeo a seguir. Mais abaixo, leia trechos exclusivos da entrevista, onde o filósofo fala de Lula e Fernando Henrique Cardoso, de tensão entre as classes e da atuação das empresas na área social.
CONTEÚDO EXCLUSIVO
O poder de comunicação de Lula e FHC
"Lula e Fernando Henrique são extraordinários comunicadores. Para Fernando Henrique, a presidência da república caiu no colo dele de presente. Não teve de fazer nada por isso. Foi Itamar que o chamou. Se Itamar tivesse chamado outro nome, outro teria sido o presidente da república. E talvez nem fosse o PSDB o partido que sucedesse a Itamar. Fernando Henrique teve um talento extraordinário, porém, de converter essa sorte, que lhe caiu no colo, em habilidade. Ele conseguiu ser um líder capaz a partir disso. Lula tem uma história de vida totalmente oposta. Enquanto a vida sempre sorriu para Fernando Henrique, ela foi muito dura com Lula. Menino pobre, retirante, flagelado, miséria, perda da mulher, perda do dedo. É uma pessoa cuja vida é atravessada pelas perdas, o que caracteriza a miséria no Brasil. Ele conseguiu, pela luta dele, crescer e, sobretudo, integrar. Lula foi muito capaz de integrar mesmo tendo um histórico que poderia leva-lo a ter muito ódio pelo outro lado. O que foi muito bom na comunicação dos dois? Nenhum deles se meteu na política cotidiana. Nenhum dos dois olhava planilha Excel – eu gosto de usar essa imagem. Não são pessoas de planilha Excel, de fazer apresentações. Que, por exemplo, fazem os estilos de Dilma e Serra. O Lula e o Fernando Henrique foram muito capazes de conquistar apoio político. Quem usava Excel eram os ministros. Eles faziam a política e conquistavam apoio, indo além do seu grupo de origem. Isso foi muito hábil e deu ao Brasil 16 anos de uma política muito bem conduzida. Uma vez entrevistei Fernando Henrique sobre esse assunto, que disse que a diferença entre ele e o Lula é que ele comunica mais no nível da razão e o Lula mais no nível da emoção. Mas, ele acrescentou, a razão que ele usa é bem simples, bem no senso comum. Não foi vaidoso. Os dois são comunicadores notáveis.”
A ascensão dos mais pobres
"Houve uma ascensão social praticamente inédita no mundo, em sua rapidez e proporção. Talvez a China tenha tido algo parecido. Aquele gráfico de 2011 e 2012 mostrando que a pirâmide é substituída por um losango social indica 50 milhões de pessoas que saíram das classes D e E em cinco anos para subir à classe C. Cinquenta milhões são 25% da população brasileira. E 25% da população deixar a miséria em cinco anos para chegar à classe C… eu não sei se isso já aconteceu no mundo. Não houve transferência de renda no sentido de tirar de uns para dar a outros. O PIB dos pobres subiu mais do que o PIB dos ricos ou da classe média. Mas as pessoas não perderam. Onde isso (a ascensão) incomodou? Num traço cultural muito forte da sociedade brasileira – e de outras sociedades bastante desiguais –, que é a sensação de que o meu valor, como classe média, é maior quando tem uma camada de pobres miseráveis bem abaixo de mim. Ricos não têm exatamente a mesma percepção. É mais a classe média porque ela se sente ameaçada. E a ameaça, no caso brasileiro, não é de perda de dinheiro. É de perda de status. E o status, para ela (a classe média), se baseia na diferenciação. Isso é muito inconsciente. É horrível. Mas significa ‘eu me sinto melhor quando vejo que os outros são miseráveis’. Quer dizer, não sei se isso é tão inconsciente."
Empresas envolvidas com questões sociais
"Minha experiência de ver empresas participando desse setor me sugere que a relação custo/ benefício não é positiva. Elas gastam muito dinheiro para acabar transferindo pouco para o beneficiário final. Deve haver coisas muito melhores, mas acho que alguns programas não são sustentáveis. Tem o problema que muitas vezes o que se faz é reinventar a roda. Tem o problema de se beneficiar um grupo relativamente pequeno. E ainda tem o problema de o projeto acabar de um momento para o outro. Sou cético quanto à participação efetiva das empresas, mas não por descrer do compromisso. Acho importante, mas não estou seguro de que a conta final seja positiva. Para colocar a coisa de maneira um pouco mais brutal, que vale para o geral: a empresa contribuiria mais se abaixasse os preços de seus produtos ou se ela intervier no setor social tendo de construir tudo a partir do nada. Isso não vale para todas as companhias. Algumas têm tradição de participação, de atuação. Tem empresas que usam isso como forma de conhecer melhor as coisas e o mundo. E até de comprometer os escalões dela com uma visão de sociedade. Isso tudo é muito bom. Falo, porém, do ponto de vista do êxito. Eu me pergunto se não seria melhor você pensar via Estado, mas num Estado mais controlado. No sentido de que, quando você destina recursos para a educação ou saúde pública, você tem um permanente acompanhamento do funcionamento disso. Nós temos, via internet, meios de aferir isso. Continuo acreditando – e acredito faz tempo – que o positivo do voluntariado é a mudança que faz no voluntário, e não no beneficiário da ação. Ele se preocupa não só com o fim social, mas com meios mais eficientes para chegar lá. O bom é que você gera um número grande de pessoas que meteu a mão na massa porque quis, e não porque foi obrigado. Acreditaria mais se essas pessoas chegassem a posições de governo ou por concurso ou por eleição”.