Sobre saltos na panela
Ao invés de pensar sobre seus custos irrecuperáveis, pense no que precisa ser feito agora para que sua organização (ou seu emprego) continue reagindo ao que acontece nos mercados daqui por diante
Ao invés de pensar sobre seus custos irrecuperáveis, pense no que precisa ser feito agora para que sua organização (ou seu emprego) continue reagindo ao que acontece nos mercados daqui por diante
“Sapo não pula por boniteza, mas porém por percisão” Guimarães Rosa, A Hora e a Vez de Augusto Matraga
Daniel Kahneman, Nobel de Economia em 2002, tem um método peculiar de escrever. Segundo seus colaboradores, quando o autor de Pensando Rápido e Devagar não está satisfeito com algum capítulo, ele apaga tudo e recomeça do zero, sem nenhum rascunho. Perguntado sobre a razão de fazer isso, o fundador da economia comportamental é direto: “eu não tenho custos irrecuperáveis (sunken costs)”( https://encurtador.com.br/qtx67).
Persistir em um curso de ação porque “já investimos muito” pode ser a desculpa racional para um dos maiores riscos que qualquer empresa ou indivíduo pode correr: a noção de que a inércia é algo “estratégico”. O exemplo clássico você já adivinhou: o sapo que vai cozinhando na panela à medida que a água vai esquentando, ao contrário daquele que pula se recebe um jato de água quente. Eu nunca fiz essa experiência com nenhum batráquio infeliz, e a ciência não é conclusiva quanto à percepção popular, mas a metáfora é útil para diversos fenômenos corporativos e de relacionamento social (https://encurtador.com.br/AX026).
A argumentação dos sunken costs geralmente é acompanhada por afirmações como “sempre fizemos assim”, “estamos batendo as metas”, “não dá para mudar de uma hora para outra”, etc. Se estamos em um ambiente relativamente estável, de fato os custos de mudança talvez não justifiquem o incremento dos benefícios. Mas depois do ano mais quente da História (lembram-se das duas inéditas ondas de calor desde o final de setembro e seu impacto no dia a dia?), um ano da popularização da Inteligência Artificial, os resultados do censo de 2022 mostrando que o Brasil está envelhecendo muito mais rapidamente que o previsto e a perspectiva de três conflitos simultâneos na Europa Ocidental, Oriente Médio e América do Sul, não dá mais para achar que nada está acontecendo.
Esses acontecimentos podem não despertar a dor de uma queimadura como foi o súbito aparecimento da Covid, mas é inevitável a sensação que algo está cozinhando nas sociedades, nos mercados e nas perspectivas individuais de cada um de nós (ou de nossas famílias, se você tiver crianças pequenas).
A necessidade de acelerar a transição energética para controlar o dano da catástrofe climática vai levar a transformações nos processos produtivos e de distribuição que vão necessitar de muitos esclarecimentos para consumidores e cidadãos afetados pelas mudanças. Também na esfera da produção e distribuição, o final de quase cinco décadas do “bônus da paz” (grosso modo, o período entre o final da Guerra do Vietnã e a invasão da Ucrânia) vai complicar não apenas a globalização, mas também traz desafios culturais importantes para as marcas que serão tragadas para a luta geopolítica.
Ao mesmo tempo, a disseminação do uso da Inteligência Artificial vai mudar a forma pela qual realizamos diversas tarefas (como relacionamento com o consumidor, por exemplo) e provavelmente contribuir para uma maior concentração de renda, como tive oportunidade de detalhar em outra ocasião (https://encurtador.com.br/iyRUV). Como se isso já não bastasse para produzir uma tremenda agitação nas práticas de marketing e comunicação, ainda teremos que lidar com um mercado no qual os idosos detêm parcelas crescentes (ou menos decrescentes) da renda e do consumo que os jovens (um desafio cultural particularmente difícil para a publicidade).
Estas macrotendências vão mudar (não necessariamente para melhor) as fontes de crescimento da sua empresa e o modo como ela opera. Ao invés de pensar sobre seus custos irrecuperáveis, pense no que precisa ser feito agora para que sua organização (ou seu emprego) continue reagindo ao que acontece nos mercados daqui por diante, e não no que aconteceu até hoje. Você não vai inovar se não desligar o que já não funciona tão bem.
Como escreveu Ortega y Gasset, “eu sou eu e minhas circunstâncias”. Se elas mudam, e queremos sobreviver de alguma forma, devemos mudar com elas. Mas uma combinação de medo e inércia faz com que adiemos este processo até o momento que não temos mais nenhuma capacidade de agir sobre ele, e sim ser objeto de sua ação. Ai já é tarde para pular da panela.
Bons saltos para você em 2024.
PS – Depois de oito anos, esta é minha última coluna. Vou aproveitar uma licença por duas décadas ininterruptas de aulas na FGV mochilando um ano pela Ásia, Europa e África. Agradeço imensamente ao Meio&Mensagem pela oportunidade, e a você pela atenção e paciência com minhas divagações. Feliz Ano Novo!
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