Opinião
Para nos manter vivos, o acolhimento
No fim, sempre defendo que a "persona profissional" seja, todos os dias, humana
No fim, sempre defendo que a "persona profissional" seja, todos os dias, humana
28 de maio de 2021 - 6h00
Você consegue me dizer o que vem à sua cabeça quando se fala em “persona profissional”? Mesmo que não exista uma separação tão clara em alguns setores, ainda há quem seja duas pessoas bem diferentes na vida pessoal e na profissional. E a última tem uma característica interessante: a necessidade de um campo de força e firmeza, o ser humano que pode dar conta do trabalho e dos sentimentos e, de preferência, sem sentir e sofrer. Até porque, pouco tempo atrás, chorar no trabalho (agora, pela tela) era inimaginável.
Mas, o campo de força não é infalível. Há momentos em que ele não segura e a gente desaba. No meio de um dos piores momentos que já vivemos, não faltam motivos. Foi o que aconteceu comigo. Sofri uma perda grande próxima de mim e da minha família.
Em São Paulo, no meu apartamento, eu era uma só. Agora, na casa dos meus pais, sou três. Decidi passar uns dias após a primeira onda e cá estou, desde então. Sozinha em São Paulo, descobri que não conseguiria sobreviver bem à pandemia. E o meu arquétipo de cuidadora e solucionadora de problemas atingiu um dos estágios mais altos em minha vida adulta.
Veja bem, em situações nem sempre normais de temperatura e pressão, frequentemente me viro muito bem sozinha e with a little (e, às vezes, big) help from my friends. Mas, depois de mais de um ano na situação que nos cabe viver e sobreviver, muita coisa aconteceu. E eu?
Eu desabei. Estar perto dos meus se tornou ainda mais importante que antes. Minha terapeuta me disse que transpareço uma força que dá a entender que não preciso de ajuda. E, por não verbalizar tanto, a tendência é que eu busque ainda mais coisas para resolver e, de alguma forma, ajudar os outros.
As perdas ambíguas estão cada vez mais frequentes. Segundo a Float, em um post no Instagram, “o mundo ao nosso redor meio que continua aqui, fisicamente presente, mas é impossível não sentir a ausência de uma vida que não existe mais — ou ainda, milhares de vidas. são tempos estranhos; dias em que a gente se sente meio fora da realidade, como num sonho (ou pesadelo) que continua se repetindo. (…) o termo ‘perda ambígua’ foi cunhado pela pesquisadora e psicóloga Pauline Boss — e é o que ocorre quando a perda se dá sem um fechamento, sem a compreensão do que foi exatamente que se perdeu”. E me afoguei em mais e mais coisas para fazer, seja para tentar esquecer, seja para a dor passar mais rápido. Mas não funcionou assim. Pelo menos, não para mim.
Alguns meses antes da perda que minha família e eu sofremos, havia lido o livro “O Urso e o Rouxinol”, de Katherine Arden, que conta a história de Vasya, uma menina que morava em um vilarejo na Rússia medieval. Vasya faz tudo: ela vê e conversa com espíritos guardiões que protegem a floresta e, por consequência, equilibram todas as relações, a colheita, o clima e a vida como um todo. O Domovoi, por exemplo, vive em fornos e protege as casas e seus moradores; o Vazila é o protetor dos estábulos e dos rebanhos; Leshiy é um espírito protetor das árvores e dos animais. E, como tudo nessa vida, eles também são uma mistura de emoções. Até que algo traz desequilíbrio, gerando medo – as pessoas param de deixar oferendas para os espíritos guardiões, que não conseguem mais proteger tudo como antes. Por isso, chegam a fome e a morte. Vasya tenta salvar o vilarejo de todas as formas, e isso me fez pensar bastante na maneira como funcionamos em grupo e sociedade.
Em ambientes generosos e perversos, já disse David Epstein em seu livro “Por que os generalistas vencem em um mundo de especialistas”, nós resolvemos problemas de formas diferentes. Mas, eu sei, dificilmente sozinhos. No livro de Katherine, o luto está presente do começo ao fim. E cada vez que vejo o luto individual e coletivo como realidade diária em nossas vidas, sei ainda mais que, sozinhos, não somos nada. Porque ele produz experiências diferentes em cada um de nós e em ecossistemas diversos, sejam eles a família, o círculo de amizades ou instituições, como o lugar em que trabalhamos.
Quando uma pessoa não está bem, o efeito é claro: há um desbalanço de forças e emoções dentro de uma família, de um grupo de amigos ou equipe no trabalho, que tentam manter a estabilidade. E essa pessoa pode precisar de ajuda; ela pode ser você ou aquele seu colega do outro lado da tela, que está tentando manter a força sem desabar. Afinal de contas, depois da constatação que estamos definhando, percebemos que também estamos dormentes, esperando o próximo passo, sem enxergar muito bem o que vem depois.
E, se você chegou até aqui, deve ter percebido que esse texto é um pouco diferente do que já escrevi na coluna. Ele existe porque o acolhimento de sentimentos dentro das empresas, seja dentro da mesma equipe ou entre elas, é muito necessário. Esse espaço seguro é algo que, por sorte, vejo na maioria dos times dos quais faço e fiz parte ao longo desses anos, porque o acolhimento tem um objetivo principal: nos manter vivos, com cada um fazendo o que pode por si e pelo outro, em meio a uma pandemia que está varrendo o mundo e levando os nossos. No fim, sempre defendo que a “persona profissional” seja, todos os dias, humana.
Há duas semanas, acompanhei meu pai em um exame. Na volta, começou a tocar uma música no rádio, que falava em segurar uma mão, assim no singular. Fiquei pensando nessa linha tênue entre o individual e coletivo, e percebi que eu não sou só três, como falei no começo. Sou cinco, dez, 20 ou mais, segurando não só uma mão, mas todas que eu puder.
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