Opinião
O poder transformador da comunicação ancestral
Como minha trajetória em Salvador mudou e transformou a minha carreira
O poder transformador da comunicação ancestral
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13 de setembro de 2024 - 14h33
Quando iniciei minha carreira na publicidade, em São Paulo, demorei a perceber que eu era sempre a “única” nos espaços. Demorei a ter a leitura de que o retrato da minha sala da faculdade de marketing refletia o que seria o mercado, e também custei a perceber que eu era uma mulher negra e de bairro periférico adentrando a publicidade e qual seria a minha responsabilidade no mundo.
Eu, bolsista na Anhembi Morumbi, compartilhava do mesmo sonho dos outros colegas bolsistas – que, por acaso, tinham a mesma cor que eu — de entrar no universo das agências estilosas e bonitas de publicidade e propaganda, de acessar os famosos cursos, fodásticos, da ESPM. O cenário era oposto ao dos demais alunos da sala, que estagiavam em agências porque tinham seus contatos, a faculdade era paga pelos pais e já tinham carros importados.
Ainda sem entender como, entrei no universo das agências na área de atendimento e um mundo se abriu, um vocabulário de palavras americanizadas passaram a fazer parte da minha rotina e surgiu, também, uma cobrança em ser uma pessoa “viajada”. Eu me sentia estranha por nunca ter conhecido outros países.
Foi na profunda relação com o café, como combustível para trabalhar muitas e muitas horas por dia, que encontrava o respiro e pessoas que vinham de uma história mais parecida com a minha. Aprendi a fazer reuniões, a defender ideias, a construir estratégias de relacionamento, a ser sociável. O primeiro aprendizado que tive com uma gestora de projeto foi “se relacione com todos, mas principalmente com a criação, porque você vai precisar muito deles, e seja um atendimento inteligente e estratégico, para argumentar e defender ideias e briefings quando necessário”.
Segui à risca e foi essencial para a minha sobrevivência. E, de fato, a partilha de projetos e a pauta extensa diária me trouxeram relações de trabalho que se transformaram em amizades verdadeiras que duram décadas.
Quando você passa a entender que é uma pessoa negra nesses espaços, tudo tem um novo significado. Comigo não foi diferente. No início da transição capilar (vale ressaltar que eu não fazia ideia de como era meu cabelo, que era alisado desde os meus nove anos de idade), comecei a passar por situações que acordaram para um novo mundo: a solidão que vinha do racismo. Olhava para o lado e só tinha eu, ou mais uma ou duas pessoas negras. Eram piadas e tratamentos ofensivos que eu nunca tinha me dado conta que faziam parte daquela rotina. Os olhos abriram, e os ouvidos também. E o corpo, que já andava coberto por armadura, se intensificou. As amizades da criação foram minha base, minhas aliadas.
Como quem tem orixá não anda só, a Bahia me chamou e eu mudei minha vida pra Salvador com a missão de um projeto desafiadoramente lindo: reposicionar Salvador como destino turístico. E aí, tudo mudou mesmo! A cidade pulsa ancestralidade, história e cultura do meu povo. Entre ruas e ladeiras, há muita história dos meus ancestrais, que não chegaram porque quiseram, mas porque lhes foi tirado o poder da escolha de viver, de permanecer em África, nossa terra.
Em Salvador, nasceu em mim o amor pela palavra. Foi quando entendi que não era a publicidade, era a comunicação, e que a escolha por essa profissão me dava uma ferramenta de transformação social política e cultural. Que tem o poder de contar histórias a partir de outro ponto de vista, de resgatar histórias que foram apagadas. Que tem a responsabilidade de mudar as narrativas imagéticas construídas. Que resgata a maior tecnologia ancestral que existe.
Quando você passa a trabalhar com comunicação, onde seu cliente é a sociedade e seu produto é uma cidade, e essa cidade é a cidade mais negra fora de África, seus desafios são enormes, e os atravessamentos também. De 2018 a 2023, chorei muito, fui completamente atravessada pelo contato com as pessoas que fazem parte do passado, presente, futuro – o tempo espiralar.
Falar com devido respeito sobre o Pelourinho, sobre a história de Negra Jhô, sobre a importância do Olodum e do ilê Aiyê na construção do movimento negro, sobre Alaíde do Feijão, sobre Alberto Pitta e a criação do Cortejo Afro, sobre os diversos terreiros de candomblé, sobre a Irmandade da Boa Morte… sobre a infinitude de artistas e ritmos que são produzidos ali… eu renasci duas vezes em Salvador: quando me mudei para lá e quando me iniciei no candomblé.
Desde 2018, os projetos que me chegam são projetos potentes, desafiadores e com foco em construção de narrativa, identidade verbal e imagética negra. Salvador me mudou e transformou a minha carreira. São projetos de comunicação, de audiovisual e de escrita. Raramente me chega um projeto de publicidade sem propósito.
Conversando com algumas colegas, todas me compartilharam que as cadeiras de diversidade estão sumindo, que não há mais o mesmo empenho das marcas e das agências em narrativas negras, que o investimento é centralizado em um ou dois projetos maiores com foco em raça e que os pequenos seguem sem patrocínio, sem apoio. Por que é tão difícil olhar para a construção de narrativas negras, indígenas e quilombolas com afinco, desejo de contribuir e acreditar que é tão potente quanto as outras histórias?
Te conto um exemplo: o Festival Latinidades, que acontece em Brasília, criado por Jaqueline Fernandes para comemorar o 25 de Julho, Dia da Mulher Negra Afro-Latina e Caribenha, potente e importante para o movimento de mulheres que em maio de 1992 se reuniram na República Dominicana para traçar caminhos visando os direitos, os espaços e as mudanças no mundo por um novo pacto civilizatório. Mulheres potentes, corajosas, inteligentes, visionárias e humanas se reuniam para discutir a criação de uma rede de mulheres negras afro-latinas e caribenhas, e ressalto que o convite para esse encontro era por meio do envio de correspondência.
Não era e-mail e nem WhatsApp, não era convite para uma reunião online e nem por telefone. Era um convite solicitando presença, enviado por correspondência, às mulheres das regiões. E elas se encontraram! Se juntaram, trocaram suas experiências e percepções, e entenderam que as mudanças políticas, sociais e de mundo dependiam da união delas. Utopias que vieram ao encontro do horizonte impulsionadas pelo vento. O Latinidades este ano teve sua 17ª edição, e foi o primeiro ano que marcas entraram como patrocinadoras. Todas as outras edições aconteceram por meio de leis de incentivo.
Onde estão as marcas?
É por acreditar em projetos como Festival Latinidades, Salvador Capital Afro, Festival AfroFuturismo, e na potência dessas narrativas que desejo seguir sendo ponte, juntando forças e estratégias para transformar o mundo para que histórias que inspirem e emocionem, e que atravessem os oceanos, sejam contadas.
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