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Até o fim do corredor

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Ponto de vista

Até o fim do corredor


22 de outubro de 2013 - 4h15

Não tenho a poesia do André Laurentino para retratar os fatos. Nem vejo a vida com a leveza do Miguel Bemfica. Faz-me falta a elegância e a diplomacia do Mario D’Andrea. Se pudesse, tomaria essas qualidades como minhas. Na ausência dessa possibilidade, percorro por novas questões que podem soar duras para alguns e alentadoras para outros.

O ano: 1971. O lugar: a consagrada Universidade de Stanford. O assunto: um grupo de psicólogos liderados por Philip Zimbardo resolve simular a vida em uma prisão. Uma ideia simples até. Estudantes com perfis psicológicos semelhantes foram divididos em dois grupos distintos: guardas e prisioneiros. O estudo deveria durar 2 semanas, mas teve que ser encerrado abruptamente em 6 dias. Esse foi o tempo necessário para que alguns guardas se tornassem violentos e iniciassem uma série de abusos de poder. No lado oposto, os prisioneiros, mesmo sabendo que faziam parte de uma simulação, aceitaram as humilhações e passaram a obedecer às ordens mais absurdas. O Experimento da Prisão de Stanford é o nome desse estudo. Fosse uma fábula, a moral da história seria uma frase presente na análise oficial do experimento: “Dentro de cada um de nós há um conformista e um totalitário, e não é preciso muito mais do que o uniforme certo para que ele venha à tona". 

Eu tenho uma pequena obsessão por prisões. Algo que me faz saltar de Brubaker a Prison Break. De Estação Carandiru a Memórias de um Sobrevivente. De Alcatraz a Última Fortaleza. Não tem nada a ver com a qualidade da história. O que me atrai no tema é o aspecto humano. O comportamento dessas pessoas em uma situação limite. Como um obeso que se aproxima do elefante para sentir-se magro, passeio pelas cadeias para sentir-me livre. Gosto de entender as normas, as regras que são criadas atrás das grades, as relações que são construídas neste ambiente.

O Edu Lima, vulgo Eduardo, tem uma coletânea de frases que poderia ser intitulada de Minutos de Pancadaria. Diz uma delas que ele adora repetir: você só conhece uma pessoa quando ela está no poder ou na merda. O que me leva de volta ao Experimento de Stanford. E, inevitavelmente, me faz andar por uma nova analogia sobre comando e comandados. Sobre por que precisamos ter a consciência em relação as pessoas que nos cercam. E como devemos caminhar pelos corredores.

Somos todos, em graus diferentes, prisioneiros do cotidiano. Por mais
que você ame o que faz, em alguma hora vai se pegar dentro de uma rotina. Onde a cela pode ser um conference call ou uma reunião mais longa do que deveria. Um cálculo simples mostra que vivemos mais a vida do trabalho do que a que acontece lá fora. E tal e qual aquele presídio no caminho para Guarulhos, ficamos a olhar para o outdoor da modelo vestindo lingerie, onde se lê: Hope. Em um convívio de tantas horas, é natural, portanto, que surjam desavenças, disse-me-disse, grandes amizades, companheirismo. Tudo está separado por uma linha bem tênue. Que pode se firmar ou quebrar com o passar dos dias.

Li “Carcereiros” sem a menor intenção de encontrar correlações. Foi com uma certa surpresa que me peguei comparando a função de chefe com a de agente penitenciário. São raros os livros que eu sublinho. Esse não teve jeito. O trecho a seguir explica o porquê: “Cumprir o expediente em contato direto com homens enjaulados não é uma profissão qualquer, exige equilíbrio psicológico, perspicácia, sabedoria, capacidade de discernimento, astúcia e atenção permanente.”

Como um carcereiro, eu tenho nas mãos o controle das horas da equipe. O simples ato de demorar para ver um trabalho porque eu estava mais interessado no Statigram pode implicar na perda do fim de semana de alguém. Não o meu. O do outro. Porque há essa diferença que já ressaltei anteriormente. A chefia é um posto isolado. E nesse posto, você pode seguir por dois caminhos. Como um calouro que sofreu um trote mais bruto, você pode pensar em dar o troco quando virar veterano. Ou pode decidir fazer o oposto. É uma escolha movida por uma soma de experiências, aprendizados e, por que não dizer, caráter. Carcereiros podem se inclinar pela violência, mas ela já estava ali latente. Tenho uma mania de olhar para as pessoas e imaginar como elas seriam no poder. Recomendo. Tende a ser revelador.

Eu sou um sujeito desconfiado. Certo é o Curupira que já nasceu com os dois pés atrás. Ao longo do tempo, essa característica me poupou de umas tantas decepções e me privou de boas surpresas. Drauzio Varella me traz um espelho ao descrever o que passa na cabeça de um carcereiro: “Logo cedo aprende a desacreditar, a suspeitar de complôs existentes ou imaginários, a ir atrás de explicações lógicas para acontecimentos obscuros, a buscar sentido nas atitudes e nos gestos mais insignificantes. Comportam-se como montadores de quebra-cabeças a encaixar as peças que se ajustam, sem perder de vista o formato das que estão soltas.” Um líder precisa olhar para a equipe e tentar antever essas nuances. Não é uma tarefa fácil. Exige inteligência emocional aguçada, capacidade de se colocar em um lugar que não o seu e de bloquear essas sensações na hora de voltar para casa. Não por acaso, agentes penitenciários vivem em um clima de permanente tensão. O que nos faz pensar porque é que quando vamos ao médico, ele diz: ah, isso é estresse.

Por favor, não estou falando que o ambiente de trabalho é uma prisão, mas avisei no início que me falta poesia. Eu poderia dividir os departamentos como pavilhões e até traçar as peculiaridades de cada um. Não é essa a intenção. A análise é muito mais na condição do carcereiro e do seu aparente domínio do ambiente. Na relação dele com quem o cerca. Na prisão, os agentes não temem o barulho. Eles temem o silêncio. O perigo real mora na quietude à sua volta. Ao terminar o livro, criei um exercício de empatia que serve para todos os líderes. Se você fosse um carcereiro e tivesse uma rebelião, o que aconteceria? Você chegaria ao fim do corredor ou seria apunhalado com uma chave de fenda repleta de rancor? Você seria protegido por ser um “mano de responsa” ou viraria a farra da multidão enfurecida?

Líderes não pensam nessa hipótese porque ela é simplesmente impossível. Na vida real, as pessoas precisam pagar as contas e podem aceitar condições com a mesma facilidade dos presos de Stanford. Não por acaso você nunca ouviu falar de uma equipe que tenha juntado um chefe no pátio. No exercício da carceragem, a liderança real é poder caminhar desarmado pelas celas abertas e ainda assim chegar na porta de saída. Quem se arrisca?

André Kassu, diretor de criação da AlmapBBDO 

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