Aprendizagem de desaprender
Quando o Brasil olha para o espelho é natural não gostar da imagem que vê refletida
Quando o Brasil olha para o espelho é natural não gostar da imagem que vê refletida
Esta é a época do ano em que começamos a receber links, e-mails e mensagens com reports e white papers de diversas fontes com as principais tendências para 2021. Já há algum tempo, costumo guardar todos esses documentos em uma pasta que tem sempre o mesmo nome: Tendências — seguida pelo ano em questão. Curiosamente, ao salvar a deste ano, me deparei com a pasta Tendências 2020, cuja data de salvamento é 27 de novembro de 2019.
Foi inevitável abrir alguns documentos e revisitar as previsões para esse ano tão imponderável. Palavras e expressões como à prova de futuro, transparência, autenticidade, tecnologia adaptativa, estratégia pivotada, experiência redefinida faziam parte das tendências em cerca de 20 diferentes arquivos de PDF bem guardados naquela pasta tão longínqua.
Inevitável pensar que, em novembro de 2019, nenhum dos trend reports sequer sonhava com a pandemia da Covid-19 que bateria à porta do planeta logo adiante, entrando pela sala de estar da China, e que se espalharia pelo mundo, mudando planos, projetos e decisões definidos há pouquíssimo tempo.
De todos os arquivos naquela pasta, o que mais pareceu à prova do futuro, de fato, é o do Future Today Institute que, além de tendências para entretenimento, mídia e tecnologia, trazia uma matriz chamada eixo da incerteza. A proposta é colocar em cada um dos quadrantes dessa matriz oportunidades a partir dos níveis de incerteza dados pelas vertentes: questões econômicas, mudanças sociais, progresso tecnológico e conjuntura política. O exercício também sugeria incorporar a esses fatores os pontos de incerteza com relação à própria empresa e, por fim, que esse esquema servisse como referência e consulta de tempos em tempos.
Aí, fomos atropelados por 2020. Ano em que a própria noção de tempo foi revista, ganhando dimensões e significados. Em que fomos forçados a viver todas as sobreposições de papéis, responsabilidades e demandas de uma só vez, no mesmo espaço, sem intervalos e, muito menos, preparo. Ano em que palavras como protocolo, comorbidade, grupo de risco, lockdown e distanciamento passaram a fazer parte do vocabulário cotidiano. Cotidiano esse que, para os privilegiados, se resumiu a ter a tela do computador como a janela de conexão com o mundo exterior, seja ele a empresa, a escola, a família, a reunião com amigos, a tão planejada viagem de férias, o show daquele artista que você nem lembrava que ainda estava na ativa.
O ano das lives e do consumo exponencial de conteúdo. Em que padrões de consumo foram subvertidos e passamos a valorizar coisas básicas como bem-estar, saúde mental e alimentação saudável. Em que os invisíveis ganharam os holofotes, escancarando o fosso social e econômico no qual o país está submerso há décadas e fingíamos não enxergar.
Enquanto escrevo, fui impactada por algumas informações do mundo do jornalismo que apontam com mais contundência para um 2021 menos desalentador. O Reino Unido se tornou o primeiro país a aprovar a vacina contra a Covid-19 produzida pelo americano Pfizer e o alemão BioNTech e prometeu começar a imunização da população nesta semana. No mesmo dia, por aqui, o Ministério da Saúde admitiu que as vacinas contra a Covid-19, que serão incluídas no Plano Nacional de Imunização, devem ser “fundamentalmente” termoestáveis e poderem ser armazenadas em temperaturas entre 2ºC a 8ºC. O que já descarta a vacina da Pfizer e da BioNTech, que exige condições especiais de armazenagem com temperatura de -70ºC.
Logo depois do anúncio dos britânicos, Martin Wolff, comentarista-chefe de economia do Financial Times e um dos principais analistas econômico do mundo, escreveu artigo com o título “Uma luz brilha na sombra projetada pela Covid-19”, sobre as vacinas e o real impacto econômico da pandemia nas maiores economias como elementos que levam a crer que as previsões não sejam tão ruins como se pensava há seis meses. Um terceiro ponto para o clima positivo é o fato de “um homem são e decente assumir em breve a presidência dos EUA”.
De acordo com Wolff, os últimos relatórios da Organização Mundial do Comércio (OCDE) são menos sombrios sobre o impacto econômico da Covid-19 do que eram em junho. Porém, sem minimizar a gravidade do impacto, o PIB global ainda tem previsão de encolher 4,2% neste ano, enquanto o PIB dos países membros da OCDE deverá encolher 5,5%. A OCDE adverte que “a economia mediana de mercados avançados e emergentes poderá perder o equivalente a quatro ou cinco anos de crescimento da renda real per capita até 2022”.
Resumo da ópera: nossa calibragem cerebral oscila entre o péssimo e o muito ruim. Quando o Brasil olha para o espelho é natural não gostar da imagem que vê refletida. Não que seja narcisista, mas porque o retrato é ainda mais complexo e desafiador por aqui. E ao tentarmos enxergar um horizonte para além das nossas janelas do confinamento, o que vemos para 2021 nos faz acreditar que sim, o cinto deverá se manter apertado por um bom tempo ainda.
A The Economist publicou, no início da semana passada, artigo com o título “2020: o ano em que o futuro foi cancelado”, da analista Catherine Nixey. De acordo com ela, “a pandemia arruinou não apenas o presente, mas a alegria de imaginar e antecipar o que está por vir. Muito da vida, grande e pequena, é sobre momentos fugazes cheios de esperança. A perspectiva de uma noite de sexta-feira emocionante ou sábado à tarde costumava tornar uma manhã de terça-feira sombria suportável. Agora, os dias se estendem, cada um igual ao outro. Uma semana se mistura na próxima provocando um looping de mal-estar e de falta de perspectiva.”
Voltando aos documentos com as tendências para 2021 que recebedo, percebi algumas buzzwords, agora adaptadas a tempos pandêmicos: negócios regenerativos, pós-propósito, paridade digital, aprendizagem ambiental, omni-acessibilidade. Palavras que carregam algum tipo de mensagem positiva.
E exatamente para evitar que esse último artigo do ano seja niilista, recorro ao passado para encontrar palavras que possam ajudar a nos dar força, inspiração e repertório para lidar com esse momento. Alberto Caieiro, o mais robusto dos heterônimos de Fernando Pessoa, em sua coletânea de poemas “O guardador de rebanhos”, aponta para a competência mais valorizada nesta virada de ano, que continua a ser a capacidade de desaprender:
O essencial é saber ver, mas isso, triste de nós
que trazemos a alma vestida,
isso exige um estudo profundo, aprendizagem de desaprender.
Eu prefiro despir-me do que aprendi,
eu procuro esquecer-me do modo de lembrar
que me ensinaram
e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desembrulhar-me e ser eu.
*Crédito da foto no topo: Mfto/iStock
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