Gislene Ramos: “Não adianta contratar mulheres negras sem ter um plano de carreira”
A publicitária, jornalista e especialista em comunicação e questões raciais Gislene Ramos fala sobre como se destacar no meio criativo
Gislene Ramos: “Não adianta contratar mulheres negras sem ter um plano de carreira”
BuscarA publicitária, jornalista e especialista em comunicação e questões raciais Gislene Ramos fala sobre como se destacar no meio criativo
Lidia Capitani
9 de novembro de 2022 - 9h18
Baiana de Salvador, Gislene Ramos mora em São Paulo há 5 anos e teve que se encontrar por dentro para crescer por fora. Mesmo sem estudar sobre a imprensa negra na faculdade, sentiu que precisava acessar sua ancestralidade para aplicar seu ponto de vista na atuação como comunicóloga. Foi na pós-graduação que se aprofundou na relação entre raça e comunicação. Ela é formada em jornalismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com especialização em cultura, educação e relações étnico-raciais, e pós-graduação em gestão estratégica de comunicação organizacional e relações públicas, ambas pela Universidade de São Paulo (USP).
Hoje, atua como redatora na agência África, e tem uma trajetória de mais de dez anos na área, com passagens pela TV, impresso, ONGs, VICE Brasil, Catraca Livre, New Content/Accenture Brasil e Mutato. Além disso, Gislene também tem um projeto particular, o Fala Preta, onde escreve sobre questões raciais. Ela ainda é membro do Programa de Desenvolvimento de Lideranças Negras e Indígenas ID_BR 2022, e recentemente foi selecionada para integrar o Programa LinkedIn Creators Brasil.
Em entrevista ao Women To Watch Brasil, a comunicóloga conta como lida com a síndrome da impostora, fala sobre a importância de ter um plano de carreira e ensina como se destacar na publicidade.
Quais características ou habilidades você considera essenciais numa liderança? Como você as desenvolve e as alimenta regularmente?
As pessoas têm uma noção de liderança muito pensada no cargo, na chefia, naquele que sabe fazer, então sabe mandar. Eu penso em liderança mais num lugar de conduzir e inspirar, de ser uma pessoa que consegue ter uma visão ampla do propósito e trabalha para chegar lá. Ela agrupa o máximo de pessoas possível para alcançar esse objetivo. Além de ter essa visão e ser uma pessoa que inspira e gere pessoas, ela precisa ter uma escuta ativa. Mas isso ainda está no imaginário, com poucas práticas efetivas.
Acho que escuta ativa é sobre ouvir o que os outros precisam ou simplesmente o que querem de mudança. Enquanto a liderança está pensando no propósito, ela precisa que os liderados estejam em desenvolvimento constante. Um trabalho muito importante que esse líder precisa ter, e falo enquanto capacidade, é pensar no desenvolvimento do seu time. Não apenas ensinar uma técnica ou outra, mas ajudar a desenhar um plano de carreira e definir como um funcionário poderá colaborar para chegar em determinado objetivo, e entender como todos podem contribuir para isso. De antemão, as habilidades que chamamos de soft skills, que não deveriam se restringir apenas ao líder, mas a todo e qualquer profissional, é a empatia e saber respeitar os processos de cada um. Parece tão simples quando falamos, mas é muito difícil entender que cada pessoa está num ponto de partida diferente de carreira.
Então, tendo essa visão da contribuição coletiva em prol de um projeto, de um processo, conseguimos avançar. O restante a gente desenvolve. Acho que quando há uma defasagem técnica aqui ou lá, a pessoa estuda e corre atrás.
Qual foi a sua motivação para criar o Fala Preta? Qual é o objetivo do projeto?
O Fala Preta nasceu como um lugar onde eu colocava os meus textos. Eu sempre escrevia bastante, coisas do trabalho, do que eu postava no Facebook, mas os materiais se perdiam. Também tinha um blog que ficava meio abandonado, e muitos escritos iam para a gaveta. Então, pensei em fazer uma página para colocar esses textos. Só que, durante o processo, eu estava fazendo minha especialização de relações étnico-raciais na USP. Foi aí que pensei em organizar tudo isso: como eu tinha um conhecimento de comunicação e, naquele momento, dos temas da especialização, por que não fazer um trabalho voltado para a comunicação negra?
Essa foi uma defasagem que tive na minha graduação. Estudei jornalismo, mas a grade não abordava a imprensa negra. Hoje, pode-se pensar que isso é um absurdo, mas era uma coisa dada e ninguém sequer questionava. Claro que eu sentia falta, mas tudo o que aprendi sobre imprensa e comunicação negra foi por fora da faculdade, infelizmente. Agora, as coisas estão bem diferentes, ainda bem. Mas, o Fala Preta surgiu disso: de criar num espaço voltado para a comunicação negra e pensando de que maneira eu poderia contribuir para a luta antirracista, uma batalha muito grande que não vou vencer sozinha e nem em vida, porque é constante.
Foi assim que surgiu o site, e hoje ele está sendo reformulado. Ele caminha junto com o meu desenvolvimento, e estamos nesse processo de pensar numa atuação que parte do jornalismo, minha primeira formação, mas que também envolve a publicidade, que é onde estou atuando. Além desses pontos, também quero abordar a poesia, a literatura e textos acadêmicos que foram fruto desses estudos ao longo da pós-graduação.
Hoje, penso no Fala Preta mais como um lugar de consultoria e onde posso contribuir para a luta antirracista. Então, posso dar um curso, uma consultoria, uma palestra, posso falar com estudantes de jornalismo ou de comunicação e publicidade sobre como atuar profissionalmente e como enfrentar o racismo estrutural por meio da comunicação. O Fala Preta surge de um momento de carreira, mas também de uma demanda sobretudo da comunicação.
Você participou do último programa do LinkedIn Creators. Como foi a experiência?
Foi incrível. Durante o processo seletivo, eu acreditei que não passaria. Pensei: ”Nossa, tem tanto Top Voice, tanta gente que escreve e que fala com uma multidão”. Acreditei que não fosse passar, mas pensei “vou me inscrever, pelo menos a experiência da escrita, de ler as perguntas e saber o que eles estão buscando já seria boa”. E me inscrevi. No final, era preciso mandar um vídeo de apresentação de um projeto que você desenvolveria, e o meu é o trabalho que faço como um todo. Era sobre o que eu já fazia na comunicação e a relação com a negritude, com foco nas mulheres negras. Eu apenas falei o que já vinha fazendo, ainda como quem estava engatinhando, e passei. Foi um susto, mas foi muito bom.
O programa foi super elogiado. Foi um dos primeiros em que você de fato recebia apoio financeiro e suporte técnico. A grande questão é que as pessoas não levam o trabalho do produtor de conteúdo a sério, mas é uma profissão. A gente estuda, pesquisa e se dedica. Por isso, ter esse apoio financeiro foi muito motivador.
Outra coisa pontuada por eles que não esqueci ao longo de todo o processo foi que eles disseram: “Vocês estão aqui porque são exatamente como são. Não esqueçam da autenticidade de vocês”. Parece papo de coach, mas na verdade não é. Porque na primeira semana, quando você vê noventa e nove pessoas escrevendo como você no LinkedIn, você pensa que não está à altura desse pessoal, você se compara, pensa que não tem conteúdo interessante. Então, vinha aquela insegurança da comparação. Inclusive, meu primeiro post foi sobre comparação. Sobre ao invés de se comparar, se inspirar, porque era o processo pelo qual estava passando.
Foram seis semanas que não foram fáceis, porque eram quatro conteúdos por semana. E houve vezes em que eu estava cansada e desmotivada, mas, ao mesmo tempo, tinha que produzir, porque fazia parte do exercício. Era um desafio não esquecer que meu ponto de partida era único, e que eu poderia até fazer uma temática parecida com outra pessoa, escrever parecido, mas meu conteúdo era único. Acho que esse foi o meu porto seguro: saber que a minha trajetória é única, que a minha escrita é única e que a gente vai acertar e errar, mas que no final dá tudo certo.
Você já teve algum tipo de sentimento de autossabotagem? Como lida com essa situação e quais dicas dá para as mulheres que se sentem assim nos projetos, áreas e lugares em que atuam?
É quase um bichinho de estimação, um papagaio, que fica aqui no nosso ombro. Parece que, enquanto mulher negra, esse sentimento está presente em todo momento, inclusive é pauta de análise. A primeira dica é: se puder, faça terapia, porque temos muitas coisas para trabalhar, muitos pratinhos para segurar e muitas coisas para equilibrar, e precisamos aprender que cair também faz parte desse equilíbrio.
Ao longo da minha vida, a síndrome da impostora estava lá, me fazendo pensar que eu não era merecedora. Desde quando passei no vestibular, numa faculdade pública em Salvador, e comecei a trabalhar nos melhores canais de comunicação. Era bem difícil, mas consegui amadurecer ao olhar para trás e pensar: “caramba, eu já fiz tudo isso”, independente do tempo de atuação. Porque é olhando para trás que vemos que merecemos estar onde estamos.
É um exercício constante, até para responder essa entrevista foi um processo. Foi uma pitada de autossabotagem, de pensar “não sou merecedora de uma entrevista, quem eu vou inspirar?”. Mas, assim: “calma, respira, olha onde você está, olha para trás e veja tudo o que você já fez. Então, sim, você tem bastante coisa, olha como sua mala está cheia”.
Acho que esse sentimento vai estar lá. Esse bichinho da insegurança, da síndrome da impostora, da autossabotagem. Somos mulheres, e a sociedade nos impõe certos padrões e nos ensina a ter esse sentimento. Não acredito que ele vá desaparecer. Talvez daqui a algum tempo, mas a dica é olhar para a nossa bagagem e pensar: “eu tenho coisas para compartilhar, sim, e outras pessoas precisam e merecem essa troca que eu vou levar”.
Quais mulheres inspiradoras você segue, lê e observa? Como elas te inspiram?
Olha, são muitas. Tenho muitas referências, até fiz um post no programa do LinkedIn sobre essas mulheres negras que me inspiram, como a Sueli Carneiro, Angela Davis, e outras grandes estudiosas. Só que eu também me inspiro muito nas pequenas atitudes de mulheres que estão no meu dia a dia e que não necessariamente são famosas.
Minhas amigas me inspiram muito. Elas estão ali no corre, trabalhando há não sei quantos anos numa área, e mudam de emprego, mudam de cidade. Eu faço esse exercício de me inspirar em quem está ao meu lado, porque acho que me dá força saber que é possível. Essas pequenas coisas do cotidiano me inspiram.
Então, tem a inspiração macro, profissional, de mulheres da comunicação, mulheres raciais, mas também das mulheres que estão ao meu redor. Todas com as quais eu já trabalhei, enfim. Por isso sempre busco fazer aquela somatória e saber um pouquinho de todas elas para me inspirar. Desde como elas cuidam dos seus filhos, vão à academia na hora do almoço e comem salada. Então, acho que dá para se inspirar em muita gente, não precisa ser famosa.
Como se destacar no mercado de criatividade atual? E de que forma você cultiva a sua criatividade?
Publicidade é um ambiente muito masculino, esse é o primeiro ponto. Tem aquele ar de descolado, onde todo mundo é muito progressista, aberto, mas são homens, brancos, heteros, cis e sudestinos, na maioria das vezes. Tem também aquela questão de que a ideia é de todo mundo, de ser um lugar colaborativo onde todo mundo pode contribuir. Mas, no fim do dia, a assinatura é sempre de um homem. As ideias têm cara e gênero.
Venho fazendo um exercício para que a ideia seja minha. Não de uma maneira que me faça a dona, mas para ter a minha assinatura, a minha contribuição. Porque no jornalismo nós assinamos as matérias, e na publicidade você também assina campanhas e ideias, ainda que coletivamente. Acho que o cerne, quando você pensa numa ideia enquanto criativo, é que seu ponto de partida é único, é seu. Então, se você tem uma ideia, uma contribuição, você parte de um lugar que é seu e é muito difícil que alguém se aproprie dele. As pessoas vão contribuir, somar, e aí sim, a ideia vai ganhar várias mãos e vai crescer, mas o ponto de partida é seu, ainda que vire uma outra coisa.
Por exemplo: eu, mulher negra, nordestina, hétero e cis, tenho um lugar que é meu e ninguém mexe. Podemos somar, alterar, ampliar, mas há um lugar apenas meu. Na publicidade, tento encontrar lugares que sejam só meus. Eu vou conseguir, ao mesmo tempo, ser proprietária daquele território e dialogar com outros, mas sem me submeter a uma estrutura maior e sem me anular, o que é bem difícil.
Para trabalhar a criatividade, acho que é importante ver outras coisas. Não tem muito segredo. É praticar, ver referências e observar um pouco de tudo. Eu vejo que, na publicidade, a galera fica correndo atrás do próprio rabo ao estudar os projetos e campanhas que ganharam Cannes ou marcas de um tal tipo de serviço. Quando, na verdade, acho que não deveria ser só isso. Sua referência pode estar num filme, num desenho animado, numa novela. Ela pode estar em qualquer lugar, porque se trata de cultura, e ela acontece ao nosso redor. Acredito que a minha contribuição na publicidade está aí, porque eu vim do teatro, do jornalismo, da TV, do impresso. Venho de outros lugares menos congelados, porque estamos falando de cultura e ela está em todo canto. Basta ir lá, olhar e pegar um pouquinho para si.
Por fim, tem alguma dica de séries, filmes, livros e/ou músicas que consumiu recentemente e te fizeram refletir sobre a condição e o papel das mulheres?
Eu estou para assistir “Mulher Rei”, então, na verdade, a minha dica é: quero ir. Mas, um livro que mexeu muito comigo foi o da Luciene Nascimento, “Tudo nela é de se amar”. Por incrível que pareça, sempre li muita poesia, mas era masculina. Na minha adolescência e na vida adulta, eu lia os cânones. Sou fascinada por Fernando Pessoa, Manoel de Barros, Manuel Bandeira e Drummond. Sou desse lugar e não consigo sair dele, porque, infelizmente, muitas mulheres e poetas negras foram apagadas.
Nesse momento em que a Conceição Evaristo se tornou mainstream, e isso foi uma coisa muito massa, eu comecei a acompanhar outras mulheres negras na poesia. Ouvindo um podcast, eles mencionaram esse livro, “Tudo nela é de se amar”, que era de uma mulher negra. Eu fui despretensiosa, mas foi uma leitura muito acolhedora, e quando sabemos que é uma mulher preta escrevendo, acho que já lemos de outro jeito, e isso fez toda a diferença.
De literatura, leio muitas coisas ao mesmo tempo. Os básicos como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Angela Davis e Carla Akotirene. Também indico a coleção “Feminismos Plurais”, um dos maiores legados que temos, além dos outros da Djamila. Essa coleção consegue compactar uma introdução de assuntos extremamente importantes. Você consegue ter uma visão de temáticas e fazer conexões com o que você trabalha e estuda, tanto sobre racismo estrutural quanto sobre empoderamento. Essa coleção como um todo é incrível.
Quer deixar um recado final?
Quando falamos de mercado de trabalho sob a perspectiva das mulheres negras, o primeiro ponto é não se colocar depois do emprego, da carreira. Eu passei por um momento muito difícil de saúde no ano passado, em que eu estava um turbilhão, um furacão, e aprendi da pior forma que eu deveria me priorizar. Não quero que as pessoas aprendam assim. Então, se tenho consulta no médico, não vou deixar de ir.
Agora, eu faço atividade física e cuido da minha alimentação, porque eu estava num fluxo de almoçar às 17h da tarde, de não fazer exercícios físicos, de não ir ao médico. Então, não podemos esquecer disso, porque por mais que ter uma carreira seja incrível, que a gente ame o que faz, precisamos estar vivos para continuar a fazer aquilo que amamos.
O segundo ponto é pensar num plano de carreira. Não adianta uma empresa apenas abrir um processo seletivo para contratar mulheres negras, PCDs e outros grupos minoritários. Como essas pessoas vão ficar lá dentro? Como será o desenvolvimento delas? Ou elas ficarão estagnadas sendo números para a empresa ficar bem na fita? Então, na entrevista de emprego, na candidatura para uma vaga, pergunte: “o que a empresa pensa sobre desenvolvimento de carreira?”. Dificilmente eles vão mentir, porque não tem como mentir uma coisa dessa. É quase que uma promessa, pois se não existe um programa de desenvolvimento hoje, está na hora de fazer.
Claro que nos sentimos inseguros na hora de uma entrevista, porque precisamos do emprego, mas essa é uma certeza que precisamos ter, ainda que em desenvolvimento. Ao mesmo tempo em que precisamos do trabalho, eles também precisam da nossa mão de obra. Precisamos não esquecer disso e saber exigir, porque as mulheres negras estão sempre lá no final e, quando vemos, não há lideranças negras. Por quê? Porque não foi pensado um plano de desenvolvimento para elas.
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