“Ser empresa antirrascista vai além da representatividade”
Tatiana Nascimento, sócia-fundadora da Janga, fala sobre a importância de jornadas de trabalho equilibradas para a saúde das pessoas e do mercado
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Isabella Lessa
21 de fevereiro de 2022 - 17h59
A Janga chegou ao mercado em agosto de 2021 com a premissa de ser uma produtora de áudio composta por produtores 100% pretos.
Fundada por Tatiana Nascimento e Antonio Pinto (que trabalham juntos na Supersonica, produtora fundada por ele e na qual ela é diretora de operações e novos negócios), a empresa já tem no currículo trabalhos para marcas como Bradesco, Enjoei, Globo e Nubank.
A operação começou com três produtores que têm seus próprios negócios: Deck 9, de Tiago Trindade e Vinex, Dessa Ferreira e JoeBlack.
Desde então, porém, Tatiana vem se deparando uma questão que vem sendo colocada de maneira mais proeminente no mercado publicitário – mas, segundo ela, não de maneira efetiva: o equilíbrio entre a demanda dos clientes e o tempo dedicado dos fornecedores, agências e produtoras, a esses trabalhos.
Na visão da executiva, é inconsistente que uma empresa se posicione como antirrascista e continue perpetuando jornadas extenuantes de trabalho, que extrapolam o horário comercial. Recentemente, a Janga lançou o seguinte posicionamento:
“Começamos nossas atividades em agosto de 2021.
Em pouco mais de quatro meses, fechamos uma campanha grande para Bradesco, além de outras para Enjoei, Embratel, Resso, Nubank, Globo e Devassa.
Nossa caminhada começa acompanhada de grandes agências e grandes clientes. Poder estrear com excelentes trabalhos e com a confiança que essas marcas e agências depositaram numa produtora que começava é um excelente sinal.
Desde a sua formação, a Janga teve a intenção de produzir música para o audiovisual com a mesma garra, vontade, profissionalismo e alegria que muitos de nossos concorrentes também empenham na execução das camadas sonoras que compõe as peças audiovisuais em geral. Para trilhar esse caminho escolheu fazer tudo isso buscando, além da excelência, a equidade racial, colocando à frente das produções produtores musicais pretas e pretos parceiras (os) que, apesar de trabalharem com produção de música e som há tempos, não ocupavam um espaço de visibilidade junto ao mercado de publicidade. Além disso, tem à frente uma mulher negra e manterá um mínimo 56% das outras cadeiras ocupadas por pessoas pretas. Completa o projeto Janga o compromisso com a doação de parte do lucro anual advindo dos projetos de publicidade para causas sociais.
Nosso valor está tanto na entrega de tudo que produzimos criativamente como na responsabilidade étnico-racial que assumimos e acreditamos ser o caminho para potencializar e tornar mais democrático e, sem dúvidas, mais criativo, um mercado que ainda é muito mais branco do que a população brasileira.
Ser antirracista está em nossa formação como empresa. Será uma busca sempre e em todas as camadas possíveis, que iremos entendendo durante o processo que resolvemos encarar.
A representatividade é um dos elementos de grande importância nessa busca, mas não é o único para qual precisamos olhar.
Nesse ano de 2022 que começa, resolvemos então traçar um novo desafio que já enxergamos à frente.
Como ser uma empresa antirracista se trabalharmos muitas horas além do que é saudável?
A disponibilidade sem limites foi um ingrediente amargo em nossa história. Gostaríamos de evoluir nesse aspecto.
Além disso, achamos que amar nosso trabalho e amar o que fazemos, combina perfeitamente com amarmos nossas casas, nossas famílias, nossos amigos e/ou nossos animaizinhos de estimação. Ou tudo isso junto. O descanso e o lazer alimentam nosso potencial criativo, transformando em lindos resultados as experiências vividas.
Mais ainda: não queremos que as pessoas que trabalham em parceria conosco aqui na Janga tenham que construir complexas estruturas dentro de suas casas – normalmente compostas por mulheres pretas – que permitam que estejamos à inteira disposição de demandas que sabemos que podem se tornar infinitas.
Ser antirracista significa não mais fomentar a reprodução dessas estruturas.
Por isso, a partir de 2022, a Janga trabalhará apenas em horário comercial, de segunda a sexta.
Acreditamos que um mundo mais equilibrado é possível para todos os seres dessa sociedade na qual vivemos.
Acreditamos que a vida é a fonte de toda a nossa potência e criatividade e que todos somos seres criadores por natureza.
E acreditamos que nossos clientes, que dividem conosco a bandeira do antirracismo, desejam, assim como a Janga, mudar essa indústria de forma consistente e efetiva.”
Nesta entrevista, Tatiana explica como surgiu a Janga e por que se posicionar como empresa antirrascista passa, fundamentalmente, por defender jornadas de trabalho justas:
Meio & Mensagem – Como surgiu a ideia de criar a Janga?
Tatiana Nascimento – Da minha vivência: da pós-graduação que fiz em relações étnico-raciais, do fato de eu ser uma mulher negra que transita em espaços brancos. Sempre busquei fazer algo com propósito. Na pandemia encontrei esse curso da USP e comecei a entender que essa inquietação tinha a ver com o lugar que eu ocupava como pessoa preta que ascende. Minha família ascendeu muito cedo: meu bisavô era filho de escravo, nasceu pobre mas não morreu pobre. Meu avô se tornou classe média alta. E você fica tentando se entender nesse lugar. Estou fazendo um projeto antirrascista na escola dos meus filhos cuja ideia está se expandindo para outras escolas. Estou com quase 18 anos de carreira e criei uma forma de fazer algo a partir de onde estou. Música é a coisa mais negra que tem, não tem como estancar a música, é uma cultura que se espalha. Chamei o Antonio Pinto para ser meu parceiro nisso, porque ele já era parceiro na Supersônica. Quando escolhi trabalhar lá, há quatro anos, sabia que era uma empresa que respeita mais o todo. Por ter um DNA de entretenimento, tem outro ritmo. É um volume grande de trabalho, mas o jeito de operar é diferente, não tem a pressão da publicidade. Minha caminhada até chegar à Janga foi de muito estudo, de ler e entender o Brasil a partir de uma perspectiva que sempre foi apagada, de ler muitas mulheres pretas.
M&M – A Janga tem o objetivo de ter todos os produtores pretos, mas não pretende ser uma empresa composta 100% por pessoas pretas. Por quê?
Tatiana – Meu objetivo é que a Janga seja uma empresa antirrascista e acredito em ter todos os produtores pretos, mas acredito na intersecção. O desenho da população brasileira, que é 56%, tem que estar representado nisso. As empresas que têm 100% dos funcionários pretos são importantes porque ainda é preciso recuperar muita coisa. E o fato de eu ser sócia, mulher preta com consciência racial, faz toda a diferença. Sempre me olhei e vi uma mulher preta. Como nasci em classe média, o racismo que eu sofri também tem um elemento que é o de as pessoas te embranquecerem. “Seu cabelo não é tão crespo, seu nariz é fino”. Tem uns marcadores e você de certa forma vai inconscientemente reproduzindo essa dinâmica. Estudar sob essa perspectiva me fez querer avançar, porque isso tudo é escondido propositalmente. Ser uma empresa antirracista está muito além da representatividade, é preciso ir para a prática de fato. Esse é o grande nó. A gente precisa avançar numa velocidade muito mais rápida. A escolha da Janga não é de ser uma empresa 100% preta porque originalmente eu e Antonio, que é lido como branco, estamos compondo a empresa juntos. É essencial que pessoas pretas não sejam somente as que estão obedecendo, mas que sejam as que tomam decisões. E sempre acreditei em uma gestão muito mais horizontal, o que tem a ver com uma questão racial. É uma batalha de todos os lados. Se fizessem a pesquisa do IBGE hoje, o resultado seria diferente, 70% se declarariam pretos. Acho importante que a branquitude se sinta parte disso porque precisam virar essa chave, encampar uma luta que será boa para todo mundo. O Brasil vai se tornar potente quando entender que é isso que nos torna fortes. A gente nega nossa origem inegavelmente preta e indígena.
M&M – Por que é importante frisar que, para ser uma empresa antirrascista, é preciso cuidar das jornadas de trabalho dos funcionários?
Tatiana – Vejo que alguns clientes estão colocando a pauta da representatividade, mas quero levantar a questão antirrascista junto a eles. Para que vejam que a Janga avançou nessa questão. Dá medo, mas tenho a tranquilidade de achar que este é o próximo passo. Já que todo mundo está se dizendo antirrascista, quero que isso avance porque será melhor para todo mundo. Não acho que não seja possível fazer o trabalho em um espaço de oito horas. Vejo que existe uma desorganização e uma internalização de um processo que vem da escravidão, da disponibilidade de quem está nas pontas – inclusive da agência, que fica com o cliente em cima. Essa disponibilidade foi leiloada no nosso mercado. No Brasil, há outro elemento que, quanto mais poder aquisitivo, mais pessoas trabalham em casa para que a pessoa possa estar disponível para essa máquina que puxa. Você terceiriza a comida, a criação dos seus filhos. Esse lastro está batendo em todo mundo e nas pessoas pretas muito mais. Isso passa pelo respeito à pessoa ter uma vida além do trabalho, isso tem uma conexão muito grande com a escravidão. Vejo isso com muita obviedade. As pessoas querem ter uma vida para além da vida profissional. Uma pessoa que cuida de seus filhos, de sua casa, de si – que tem tempo para explorar o mundo. Como ser criativo se não há tempo para viver? A maioria das pessoas pretas não tem esse lastro, elas têm que se virar em 80 mil para cumprir o trabalho. Não acho certo. É preciso ter horários para que pessoas possam cuidar de seus filhos, de suas casas, possam ver sua série, ir ao cinema, sair. Tem de haver uma mudança institucional e estrutural do mercado em geral. Isso é forte no mercado de publicidade porque estamos operando em um lugar de muito dinheiro.
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