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O futuro da Imprensa em questão. Mas qual futuro?

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O futuro da Imprensa em questão. Mas qual futuro?

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11 de janeiro de 2017 - 11h39

BuzzFeed publicou ontem, sem constatação, documentos secretos que supostamente contém evidências da ligação tão fartamente comentada entre a Rússia e Donald Trump. Outros grandes publishers e jornalistas independentes de peso teriam tido acesso aos mesmos documentos, mas por não poderem confirmar seu conteúdo, preferiram não publicá-los.

O editor responsável por BuzzFeed, Ben Smith, em carta aos seus colaboradores internos, justificou sua decisão alegando que o público norte-americano tem direito de conhecer o documento e que não publicá-lo seria um desserviço ao jornalismo. Que os leitores e seguidores do BuzzFeed decidissem sobre sua veracidade e acuracidade por si sós.

A você, meu caro leitor, e também em nome da mesma ideia de Ben, de que o público precisa saber muita coisa que muitas vezes não vêm à tona por interesses os mais diversos, escrevo este texto. Vou fazer um Wikileaks explítico e público da minha cabeça. E dizer o que penso sobre o jornalismo contemporâneo diante desse fato e de tantos outros equivalentes mais recentes.

Certamente, vou perder algumas antigas amizades da profissão.

Então, vamos lá …

Estamos vivendo a Terceira Guerra Mundial: a da informação.

Não existe jornalismo objetivo, nunca existiu.

Vivemos a iminência da perda do pouco que resta de credibilidade da Imprensa.

Essas três frases resumem o que você vai ler. Toma fôlego aí, que vamos longe juntos.

A Terceira Guerra Mundial

A tese não é minha, é de Julian Assange, do Wikileaks. Para ele, é ilusão imaginar que o mundo tem hoje apenas pontos isolados de conflitos armados – em verdade, temos menos guerras hoje do que em anos passados, acredite – e que o resto do mundo vive a salvo. Assange defende há anos a tese de que há uma Terceira Guerra Mundial acontecendo todos os dias e que ela é uma guerra de informações, contra-informações, invasões da vida privada do cidadão, das empresas e dos governos, numa proporção planetária.

O que vimos no caso da disseminação bem sucedida pela Rússia de informações falsas sobre Hilary Clinton para favorecer Trump nas eleições norte-americanas é apenas a parte aparente, revelada episodicamente, de uma prática recorrente e subterrânea em curso, que coloca a credibilidade de qualquer informação trafegada, notadamente na internet, em cheque.

Como pessoas, e como profissionais, simplesmente não podemos mais hoje acreditar em quase nada do que lemos ou assistimos online (off-line também). Mesmo de fontes que usualmente consideramos isentas e confiáveis. Sobre elas vamos falar um pouco mais, mais adiante.

Essa guerra da informação torna o mundo de hoje um caldeirão borbulhante de verdades falsas. Ou falsidades travestidas de verdades, tanto faz. Fake News, if you want.

Graças a esse fenômeno, que não é nada novo, mas que recentemente explodiu de forma inaudita e tomou o mundo da informação de assalto como nunca antes na história, analistas e cientistas da informação e da Imprensa cunharam o termo post-truth, que você certamente já ouviu falar, porque está em todo lugar.

Pós-verdade são informações não devidamente embasadas ou tecnicamente pré-checadas, que circulam como se fossem informação confiável, e que são abraçadas e disseminadas pelas pessoas porque para elas essas informações fazem sentido, atendem suas lógicas internas e lhes agrada. Do ponto de vista da confiabilidade, lixo.

Na prática, significa o seguinte: para uma parcela imensa das pessoas hoje não interessa muito mais se os fatos são verdadeiros ou não. Se eles atendem às minhas expectativas e estão em linha com o que penso e quero acreditar, eu acredito. Dane-se a verdade. Post-truth.

Muito já se discutiu sobre a constatação de que a internet está nos deixando mais burros, porque tendemos a acessar fontes e nos informar nas redes sociais que só contém pessoas e informações com as quais concordamos e nos alinhamos. O resto fica de fora. Ficariam de fora então desse filtro e curadoria covardes – porque se resguardam no conforto da similitude – a diversidade e a riqueza do contraditório. A dialética das ideias.

Concordo zero com essa tese. Quer dizer, concordo zero que ela seja nova e reveladora de um hipoteticamente novo Homus burrus, pós-digitalis. Chongas!

Sempre foi assim na vida real. Sempre estivemos juntos dos amigos com os quais mais nos identificamos. E também, costumeira e historicamente, sempre discutimos com maior prazer e frequência com aqueles que comungam dos nossos ideais e princípios. Dos outros, a gente prefere distância. Sempre preferimos. Fomos, assim, Homus burrus sempris. Com essa tese eu concordo.

Ocorre que o poder da web e do mundo digital transformou aquilo que era privado e circunscrito a pequenos grupos próximos entre si em um fenômeno de silos ideológicos públicos e irrestritos. Global.

Essa é a guerra. Uma guerra em que a verdade perdeu seu valor relativo e o que importa são suas versões. A minha mais do que a sua, obviamente.

E aí nasce outra questão. Como coloca Mastin Hirst, um analista canadense doutor em ciência política e da mídia, “num mundo em que a verdade se tornou relativa, qual o papel da Imprensa e dos jornalistas ?”.

Não existe jornalismo objetivo. Nunca existiu.

Nas minhas primeiras aulas de jornalismo, meus diletantes professores se esforçaram o tanto que puderam para me ensinar que o bom jornalismo é isento e objetivo. Eu sempre concordei com a tese, mas muito cedo descobri que essa é uma das maiores e mais falas verdades do jornalismo contemporâneo. Isso meus professores nunca me ensinaram. Aprendi sozinho.

Muito antes de ter trabalhado em qualquer órgão de Imprensa – e comecei a trabalhar neles aos 16 anos, fazendo hoje, portanto, 44 anos – notei o que para mim se tornou básico: a verdade da Imprensa é a verdade de quem controla a Imprensa.

E não se engane. Não é um discurso marxista basicão. A esquerda faz a mesma coisa. O Estado Islâmico idem. O domínio da informação é que determina a verdade maior que cada órgão de Imprensa expressa. Mesmo que essa verdade não seja, digamos, tão verdadeira assim.

Naquelas priscas aulas de jornalismo, aprendi que há uma técnica clássica que te levaria a ser objetivo: quem, como, quando, onde e porque. Se você seguir essa regrinha direitinho, pronto, virou objetivo. Passe de mágica da Imprensa moderna.

Esse manual nasceu nos anos 50 na imprensa norte-americana e deu lastro a ideia de que os donos das empresas de jornalismo estariam, assim, prestando um serviço inestimável de isonomia e distanciamento objetivo à sociedade, pois haviam criado a técnica da isenção jornalística.

Isso nunca aconteceu e essa técnica é meramente organizativa da informação. Um recurso bobinho e, em minha opinião, preguiçoso e reducionista. Nunca usei, jamais usarei.

Todo jornal e toda revista – ou seja, o jornalismo impresso que deu origem, lá atrás, a toda a imprensa que conhecemos – sempre serviu ideologicamente aos donos do negócio. Todos os demais grupos de imprensa que vieram depois, o mesmo.

Há pecado nisso? Na minha opinião, se concordarmos que vivemos numa sociedade capitalista em que toda empresa de comunicação tem o direito, livre, de informar o que desejar e se posicionar da forma como quiser … não há pecado nenhum. Tá valendo.

A imprensa, mesmo dentro dessas condicionantes, é um dos mais poderosos e combativos meios de construção de sociedades mais justas e melhores que conhecemos. Creio profundamente nisso. Milito nisso, como já disse, há 44 anos.

Mas não me venha com esse papinho de objetividade, porque esse, eu não engulo.

Língua é diferente de Linguagem, que é diferente de Escritura.

Vou fazer um breve intervalo aqui e explicar uma coisinha semântica sobre Língua, Linguagem e Escritura para você. Se não tiver saco, pula todo o texto em itálico e siga em frente.

Mas é o seguinte … quando você ou qualquer outra pessoa escreve a letra “A” num espaço em branco, está praticando um ato político. É uma armadilha. E explico por que.

Quando você optou por “A”, fez uma escolha. Inseriu seu texto num contexto e na história. Fez uma opção na sociedade na qual vive. E nenhuma escolha é isenta. Toda escolha é comprometimento, por definição. E todo o comprometimento, no arcabouço da história, é um gesto político.

Língua é o idioma no qual escrevemos. Linguagem é a dinâmica com a qual usamos a Língua. Escritura é o contexto e a inserção política e histórica de toda e qualquer produção de comunicação. Porque não “B”, afinal, não é mesmo?

Isso é Roland Barthes, vale a pena ler.

Imagine um jornalista diante de um espaço em branco. E um editor diante de uma manchete em branco. E um dono do jornal diante de espaços e mais espaços em branco, ao longo da história de toda a Imprensa, desde que ela surgiu, até hoje. Quantas escolhas foram feitas? Todas, sem exceção, intencionais.

Percebeu? Objetividade é o escambau.

Vivemos a iminência da perda do pouco que resta de credibilidade da Imprensa.

“Boatos são eternos” é o título do primeiro capítulo do livro “O que aprendi sendo xingado na internet”, do jornalista Leonardo Sakamoto.

Identificado como um profissional da imprensa de esquerda, Sakamoto cobriu guerras mundo afora e têm experiência em ser contra o status quo. E ser xingado por isso.

Independentemente das cores ideológicas do Saka, vamos a uma de suas ideias (se você é de direita, solta a franga aí e lê sem filtro).

Nesse primeiro capítulo do livro, ele relata que um boato atribuiu a ele a divulgação de uma informação absolutamente falsa contra os aposentados. Que ele foi estigmatizado publicamente na web por isso. Que se defendeu juridicamente contra quem armou contra ele. Mas que depois da verdade falsa haver se tornado verdade-verdadeira, ferrou. Um crápula, esse Saka! Foi no que ele se transformou para velhinhos e velhinhas do INSS.

Falsidades na imprensa costumam ser mais poderosas e mais impactantes, mostram estudos, do que a verdade real, muitas vezes bem mais sem graça. Boatos são eternos, vaticina Sakamoto. Essa sim é, em minha opinião, uma verdade dolorosamente verdadeira.

Pois nosso japa nos revela: “Sites anônimos e páginas sem assinatura, instalados em servidores fora do Brasil e que, portanto, dificilmente serão processados, já rivalizam com os veículos tradicionais e os independentes na formação da população conectada”. É uma indústria da inverdade, tornada Imprensa.

Pesquisa do Pew Institute, dos EUA, o maior e mais qualificado instituto de pesquisas do mundo sobre a internet e seus efeitos na sociedade contemporânea (assine a newsletter deles, indispensável), revela que parte significativa dos norte-americanos prefere hoje que os órgãos de imprensa não emitam sua opinião sobre coisa nenhuma. Que apenas relatem os fatos, da forma mais isenta que conseguirem.

Isso ocorre porque eles se sentem inseguros diante do mar de versões do post-truth. Essa é, em números estatísticos, a maior ameaça a Imprensa contemporânea: a perda definitiva de sua credibilidade. E de sua razão maior de ser.

Como disse Hirst: jornalismo e jornalistas para que, se eu tenho acesso a verdade que me interessa a minha disposição, onde eu bem entender?

Qual jornalismo vai sobreviver? Vai sobreviver?

O jornalismo e a Imprensa expressam um pedaço do todo, para apenas um pedaço da sociedade (no Brasil, a linha de corte já começa no analfabetismo). Opta por concentrar-se no que considera, por critérios próprios obviamente, aquilo que é o mais importante. Mas mais importante para quem, cara pálida? (Lembram da opção diante do espaço em braco? Poizé..)

Usa assim de uma visão reducionista do real, que lhe permite a produção controlada do fluxo de informação, já que estamos falando de uma indústria que precisa colocar na prateleira do consumo seu produto fresquinho, todos os dias. E assim fica mais fácil. E produtivo. Foi até que bem rentável durante, sei lá, séculos.

Fato é que o conceito de abrangência de massa, que se alinhava à perfeição numa estratégica de grandes distribuições da informação, entrou em curto circuito e, na web, as coisas passaram a ser cada vez mais one to one.

Ao não conseguir captar, nem representar, a diversidade cultural e política, altamente complexa, da sociedade contemporânea, que na web, fora dos meios de comunicação, aparece tão bem, a Imprensa fica cada vez mais menos interessante para uma parcela enorme dos cidadãos de hoje. Meia bomba.

Mas há algo ainda mais complexo e mais perigoso para o futuro da Imprensa: sua própria opção por expressar o que acredita, de forma hoje cada vez mais exacerbada, retórica e, em alguns casos, quase panfletária.

Estou falando aqui dos grandes órgãos da imprensa que perderam o pudor, esquecendo por vezes as regrinhas básicas de bom tom editorial da minha velha escola de jornalismo, e partiram para a defesa entrincheirada de suas próprias posições.

Nos Estados Unidos, a Imprensa foi pró-Clinton. No Brasil, a Imprensa é anti-PT.

De novo, ressalto que acredito e defendo fundamentalmente esse direito. Só que a contrapartida desse movimento de vai ou racha acelerado contém implícito o risco dos órgãos da imprensa perderem, para parcelas e mais parcelas de sua audiência, a credibilidade de sua boa índole.

Trata-se não só de um eventual risco da perda de interessados, mas de uma crise estrutural no próprio modelo conceitual da Imprensa, a instituição em si, Imprensa com “i” maiúsculo (como usei intencionalmente até aqui).

Esse é o ponto.

As grandes marcas do jornalismo ainda são aquelas em que tentamos buscar rescaldo nesse mundo inverdadeiro do post-truth, mas são elas mesmas que têm optado por colocar em questão essa nossa salvaguarda, a salvaguarda que criaram anos atrás e que deveriam buscar preservar. Estão fazendo justamente o contrário.

Não ando nada animado com nada disso, porque vejo no horizonte a exacerbação de posturas e não seu apaziguamento. E isso será muito ruim para quem busca informação e para aqueles que a produzem.

Espero estar enganado. Espero que, com objetividade ou não, a Imprensa siga prestando seu inestimável serviço de informar com a maior competência que conseguir. Já seria uma imensa prestação de serviço a esse mundo perdidão em que nos metemos.

Sem esse farol, estaremos definitivamente às escuras. Mas é para a escuridão que a Imprensa parece insistir, deliberadamente, em caminhar.

 

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